Ainda Estamos Aqui
Reflexões proporcionadas pelo filme Ainda Estou Aqui, visualizado na véspera do primeiro 25 de Abril sem homenagem governamental.
Ocorre-me, quando acabo de ver o filme, que em muitos casos a liberdade se perde às fatias. Partilho o pensamento, mas faço uma anotação ao canto confirmar mais tarde: não será sempre? Isto porque mesmo que haja um golpe de Estado, ou que o desmantelamento de um Estado Democrático se faça com a rapidez a que assistimos em tempos recentes. Mesmo nesses casos, quando a febre aparece, não tinhamos já notado sintomas, queixas ou mazelas a exigirem atenção? Será então mais certo dizer que a liberdade nunca se perde de uma só vez, mas vai-se perdendo?
Tenho de pensar, porque posso estar a dizer uma grande asneira. Confirmar mais tarde. Tenho, contudo, receio que a anotação, como tantas outras que me faço ao longo dos dias, amareleça e esbata sem mais atenção. É díficil reservar, ao fim da corrida dos dias, energia para pensar a sério e a fundo e não à superfície.
Por isso somos, a maior parte de nós, como ela, a protagonista principal. E fazemos coisas semelhantes, à medida das nossas possibilidades. A maior parte de nós mergulha nos espaços que sobram dos dias como ela mergulha na água do mar: em busca de um esconderijo de paz e silêncio. Temos justificações para isso, várias desculpas. Podemos não ter cinco filhos para criar, mas temos o trabalho que nos consome e que serve tanto para nos dar pão, como para nos tirar o corpo com que o comemos. Nada disso é mentira.
Mas um dia, quando vemos os camiões do exército aparecem na rua, podemos afirmar que não sabiamos que eles passavam, sem mentir? Que não sabiamos que eles andavam perto de outras casas, só que não no nosso bairro? E conseguimos admitir que foi por isso que continuámos a mergulhar?
Faço outra anotação mental verificar como foi no Brasil. Havia sintomas, com certeza. Quais eram, em que parte do corpo se manifestavam, que aspirinas e remédios se tomavam, para os atenuar?
Anoto o propósito num pedaço de papel mental, mas depois amarroto-o — também em sentido figurado — e atiro-o para um caixote do lixo imaginário (tudo feito sem danificar árvores). Para quê, estas anotações? Para quê este querer saber dos pormenores, dos sintomas, se nada parece mudar quando se sabe.
Vi o filme ontem e entristeceu-me, eu que já nada alegre ando. Entristeceu-me a pergunta final. Vale a pena continuar a falar nisto? A pergunta é feita por muita gente. Lá, e deste lado do oceano. Naquela ditadura e em tantas outras. De que serve a memória? Não sabemos já tudo? E o que não sabemos, não é melhor esquecer?
Os sintomas. Primeiro uma moinha só, um desconforto, que cresce, devagar, propaga, expande, toma um comprimido e outro, nunca se pensou que desse nisto.
Entristeceu-me particularmente pela data em que o vi.
Hoje prego um cravo ao peito. E saio com ele à rua, porque é à rua que ele pertence, foi na rua que ele nasceu, e se querem saber o que penso hoje, é nas bancadas da Assembleia que ele murcha.
Estejamos atentos, porque os sintomas começam por uma coisa de nada. Uma moinha só, um desconforto. Quando tivermos tempo para pensar, tentemos fazê-lo, em ver de mergulhar num qualquer mar de água líquida ou luminosa, molhada ou seca. Façamo-lo, e pensemos a sério no que foi o 25 de Abril, e porque razão parece ser que a cada ano que passa, é mais incómodo celebrá-lo.
Quero muito ver o filme! Ainda nao tive oportunidade.