Cortinas de seda
Às turras com este país que me inquieta, me preocupa, e só não me doi porque não o sinto meu. Para lá disso ocupada a estrear desafios e a gerir as expectativas histórico-literárias do meu vizinho.
Acordei de mal com a Malásia. É feito disto, o nosso casamento forçado. Despido de amor desde o início, construído com uma tolerância frágil que se desmancha numa noite mal dormida e se queima na breve faísca de uma indignação. Estamos condenadas ao fracasso, nós as duas, por muito que haja momentos em que fingimos que não importa o fosso que nos separa e que até conseguimos dormir juntas, se a cama for grande e os lençóis sobrarem.
Ontem estive a 52 andares do chão, com um grupo de mulheres expatriadas. Cabelos esticados ou enrolados, maquilhagem elaborada, saltos altos como edifícios. O equilíbrio era frágil. As nuvens estavam perto, enroladas num crepúsculo empoeirado. Atrás da sedosa cortina de poluição, as cores esbatiam-se e a cidade adquiria uma sonolência deslumbrante. Estive na ponta do edifício, a ver o mundo desse alto, com os olhos embaciados, encostada ao precipício de vidro. Os saltos delas tão altos, mas elas tão equilibradas, e eu nos meus sapatos rasos, a sentir que a gravidade actuava neles como não actuava na ponta fina dos delas. Corriam no precipício com telefones na mão, posavam como bailarinas, e havia um doce equilíbrio em tudo o que faziam. A gravidade só actuava em mim, e parecia ser que só eu notava que o chão tremia, e só a mim me ocorria que as nuvens não são lugar para se estar, e só eu achava que estávamos demasiado alto, num mundo embriago de poeira, para conseguirmos cair de pé.
Estive noutro lugar, também, antes desse, e acho que sonhei com ele. Que me vi outra vez no cabeleireiro com uma máquina monstruosa a aquecer-me a nuca, a observá-los através do espelho, enquanto as tintas trabalhavam para me disfarçar os anos. A criança tinha acordado outra vez. O seu filho. E ali estava sentado outra vez, distraído de mim, porque a criança é um mundo inteiro. Tão mais do que aquela casa, que não é só salão de cabeleireiro. Tão mais do que as contas e os sonhos e as desilusões. Tão mais do que este país que é dele. O menino foi adoptado há um mês. A família não gosta que tenha a pele tão escura, que não seja branquinho e de etnia chinesa. Mas a família não gosta de tanta coisa… a começar por ele gostar de homens e não de mulheres. A criança olhava também, curiosa de mim, daquela máquina de fazer calor na minha cabeça. Tão calma como ele, naquela curiosidade serena. Tão risonha como ele. A pele, notei, não era assim tão escura, mas o rasgo dos olhos era diferente. Pormenores que não deviam ter voz, aos quais não se devia prestar atenção, mas que aqui têm, e gritam e debitam, e eu acabo por reparar neles. Pormenores que tapam, num vozeirão de absurdos, o que não é detalhe, mas essência. O menino é indígena e quem o colocou no mundo não o quis.
Alheio aos absurdos, o menino encostava-se ao peito dele, tão seguro do seu lugar no mundo, sem desconfiar que pele e o corpo também são nuvens.
Fotografei-os na mente e trouxe o retrato para casa, mas hoje, ao acordar, a Malásia tinha vomitado em cima dele. Homofóbica, enquanto eu dormia, tinha invadido centros comerciais, cega de fúria, e confiscado relógios arco-iris da Swatch — ou será roubar a palavra mais certa? Neste país de moral tão limpa, a homossexualidade é vergonha e poluição. Não o lixo, a ignorância e a corrupção endémica, não a poluição e a ganância, não o atraso, a escravatura, o casamento infantil, a lei que permite ao violador casar com quem violou. A vergonha são os relógios arco-iris e uma mensagem de amor. No meu quarto, o vómito que este país verteu sobre o retrato que trouxe comigo tapa a criança. E eu tenho medo de limpar a nojeira e perceber que agora aquele sorriso me doi.
Há zangas breves, e zangas longas. Esta vai durar, porque vejo que o dia passa e tudo me continua a irritar e me agarro a mais justificações para não querer partilhar cama logo à noite. Se a livraria estivesse aberta, talvez me metesse noutra história e me esquecesse, ou o tempo passasse, entre a sedução das lombadas e o diálogo das contracapas. Mas fechou. Tal como a outra, que tinha um café onde eu às vezes ia escrever. E dou por mim a pensar que, além de tudo o resto, também não quero viver num país onde as livrarias caem, desamparadas, desaparecem de tão vazias, onde parece que ando sempre sozinha naqueles corredores, e me sinto já tão irreal como elas, e a minha pele se vai fazendo translúcida como a de um espectro. Não quero partilhar cama com um país que vomita, embrutece e pensa poder cegar com cortinas de seda a minha indignação. Vingo-me a teclar furiosamente cada uma destas palavras. E hoje à noite, roubo-lhe os lençóis.
O que ando a fazer
Diz o calendário que já passou metade deste ano de 2023. Como sou muito selectiva nas minhas avaliações e dou prioridade ao que me põe de pé, ostensivamente virando costas ao que me derruba (não creio que seja possível ser-se escritor(a) de outra forma) digo que tem sido um ano preenchido e promissor. A quem gosta de me ler, aviso que o terceiro romance continua quietinho onde o deixei da última vez que o vi, algures no início da primavera. De vez em quando arma-se em esperto e bate-me à porta, a saber que não posso abri-la. E traz pela mão um quarto romance, como se houvesse espaço, tempo e perícia, neste meu cérebro limitado, neste calendário rígido, neste ser gente, mulher e mãe, para equilibrar tanto. Não há. Passo à frente.
O ano de 2019 foi o ano em que acabei o meu primeiro romance e descobri que havia em mim algo que eu não sabia.
… concordamos que o ano de 2020 não existiu, certo? Passemos a 2021.
O ano de 2021 foi quando uma editora aceitou publicá-lo e eu vim a público, com um tremendo síndrome de impostora de cada vez que se usava a palavra escritora.
O ano de 2022 foi quando limpei esse síndrome do meu sentir, desmistifiquei a tarefa, publiquei um segundo romance e percebi muito do que está para lá da escrita —e que é bom perceber, tanto como escritora como enquanto leitora
O ano de 2023 ficará como o ano em que pela primeira vez me contratam para escrever. Um conto sobre inclusão e envelhecimento, e um livro de memórias sobre a emigração portuguesa e associativismo na Suécia. Um acabado, o outro quase, quase. É isto que faço agora. Depois, quando vier julho e agosto, vou a banhos. E ainda só terá passado pouco mais de meio ano. Ena, ena, tanto ainda para fazer!
O que ando a ler
Ando a ler tudo e nada. Estou em dois clubes de leitura, a tentar resistir ao terceiro e tenho uma lista enorme de autoras portuguesas que quero descobrir. Em paralelo, o meu vizinho continua a trazer-me livros sobre a história da Malásia, porque já percebeu que eu estou de mal com ela, e não sei se quer que eu me aproxime ou que a zanga seja para sempre. Já é o quarto calhamaço que deixa à minha porta e eu ainda não consegui abrir o primeiro.
Nos dois clubes que frequento, decidimos ler autores nacionais. Nacionais, entenda-se da Malásia. Para verem como as coisas são, num país onde tão pouco se apoia a cultura (não sei se sabem que estou de mal com a Malásia) não consegui ainda acesso ao livro publicado por um dos autores nacionais mais reconhecidos além fronteiras. Chama-se Tan Twan Eng. Publicou há anos “The Garden of Evening Mist”, que chegou a inspirar uma adaptação cinematográfica. Uma história dolorosa sobre a segunda guerra mundial na Malásia, com uma descrição das Cameron Highlands tão idílica e viva que me lembro de o ler, nas noites sufocantes de Kuala Lumpur, e conseguir sentir aquela frescura pura de um entardecer na montanha.
Tan Twan Eng foi um dos membros do júri que escolheu este ano o Booker Price Internacional, do qual também fez parte Leïla Slimani. Está na Inglaterra, a percorrer o país numa digressão de divulgação do novo livro. Aqui, na cidade de Kuala Lumpur, capital do seu país, o livro ainda não chegou*. E não tem data para ser lançado, apresentado. Não se fala nele. Não há orgulho, nem sequer o consolo da falta dele. Há, apenas, desinteresse.
Digo-vos, que nunca sejamos assim. Com todo o bafio que temos no nosso pequeno país, ainda crescemos centímetros quando se nos dá crédito, lá fora, ao que resistimos a dar por nós. É mau, mas pode ser muito pior.
*E eis que depois de escrever isto me vou actualizar e percebo que já chegou! Graças a uma fotografia partilhada por de uma leitora no Instagram, não a um artigo nos jornais. Bom, adeus e até para o mês que vem, que vou à livraria que ainda está aberta, antes que também ela feche!
“Talvez todas as viagens (…) sejam feitas para termos a certeza de onde vimos.” Susana Moreira Marques, in Lenços Pretos, chapéus de palha e brincos de ouro