Consegui! Aos solavancos.
Sentei-me, com papel e caneta, café ao lado, miúdos na escola. Janeiro já a meio e eu ainda a organizar o ano. Desesperante, para quem é obcecada com a ordem, para quem acredita estar condenada ao sub-aproveitamento a vida que não esteja organizada à partida. Parvoíce de crença que ainda por cima convive mal com a maternidade, mas não consigo desalojá-la de mim. Paga a renda sempre a tempo no canto da cabeça que ocupa… E mesmo a saber que quando escrevo não consigo agarrar-me a um plano, por muito que teime e insista, e que os personagens, como os dias, me ouvem tanto como os meus filhos, nada altera esta teimosia.
Faço-me a vontade, portanto. Sento-me, e ainda o café não chegou e já me ligam da escola porque o miúdo está doente. No dia a seguir é o gato. Depois, atiram-me com férias escolares. Mas não acabou de começar o período? Com certeza, mas é necessário receber em grande o Ano Novo do coelho. Venha ele, com fogos de artifício, tantos que no bairro a fumaça parece bruma matinal desorientada, a pairar na noite. Contribuímos também com os nossos e, vá lá, ninguém sofre queimaduras relevantes. As aulas regressam, e pimba!, veterinário e médico outra vez. E eis que a senhora que me ajuda com a limpeza de casa está de férias nas Filipinas e eu que não sei onde raios se meteram os lençóis da nossa cama e juro que eles também foram de férias sem me avisarem, nem do destino nem da data de chegada.

Mas nada, nadinha, me desmotiva desta convicção de que é preciso organizar, ter planos, antecipar entraves, criar objectivos. Que é preciso colocar um pé no travão dos dias, abrandar marcha e decidir por onde seguir, ou os anos passam e foram eles que nos levaram, e não nós a eles. Entendem o meu entusiasmo quando o digo? Não há hipótese…
Fui-me pois sentando, nos intervalos da vida, encolhida nos minutos, escondida como pude dos lençóis e das férias e das chamadas da escola, agarrada com ferocidade de miséria às migalhas de ordem, e atingi um plano: aquele que vai sofrer inúmeros desvios ao longo do ano, porque depois do ano novo chinês há-de vir a Páscoa e o Ramadão e o Verão e o Deepavali e, quando der por ela, desta vez aqui, em clima tropical, há-de aparecer, sentado num trono, um indivíduo vestido de vermelho que só não transpira pelas barbas falsas porque nos centros comerciais da Malásia é quase sempre Inverno. E isto é só o que sei. O Roger diz que, quando eu morrer, tenha eu cem anos, na minha campa há-de sempre ler-se qualquer coisa como “deixou tudo por fazer.” Touché!
Do plano parido com tanta dificuldade, frágil apesar de mim, chega-vos esta Newsletter em formato novo e com casa nova. Porquê? Porque ou lhe dou sentido, ou acabo com ela. O tempo, esse recurso que nos é a todos tão escasso, mas ao qual hesitamos em conceder-lhe a riqueza que lhe pertence, não pode ser deixado à solta. É malandro e foge (cá volto eu, outra vez). E quando digo o tempo, digo o meu e vosso. Eu que escrevo e vocês que me lêem.
Anuncio-vos, pois, que com este novo formato, a Newsletter passa a ter uma periodicidade certa e um objectivo definido. Tudo arrumadinho, como a gaveta das meias dos meus filhos cinco minutos antes deles chegarem a casa.
Periodicidade
A periodicidade foi sempre objecto de muita desculpa da minha parte. Comecei com planos mirabolantes de notícias semanais, passei para de quando em vez, voltei a tentar a rigidez das duas semanas. Não sei se vocês ligam a isto, mas a mim incomoda-me, gosto da planificação, já sabem. Então, caros amigos e amigas, a periodicidade desta Newsletter é, daqui para a frente, mensal. Uma vez por mês, mas sem data definida. Algures no início... Esta é a de Fevereiro e, como viram, não aparece no dia 1, que é dia de regicídio. A seguir só vos volta a bater à porta em Março, em dia incógnito. É o reflexo sincero da minha vida e de uma pequena condescendência ao imprevisto… custa, mas lá vou aprendendo alguma coisa.
Conteúdos
De conteúdos, haverá sempre o corpo, que desta vez foi consumido por estes disparates (não asseguro que não os haja no futuro). Uma crónica, uma estória, um vislumbre da Malásia, um desabafo, uma partilha do processo de escrita ou doutra coisa. Tudo a depender do mês, das celebrações e feriados, se as toalhas ou as cuecas decidem também ir de férias com os lençóis e outros imprevistos semelhantes com asas de borboleta.
O normal será ter aqui um texto que conste do Blogue Escrita e Outras Coisas, que tem estado parado à espera que eu acabe de organizar o ano. Acabo de lá enfiar, contudo, um pequeno texto sobre José Saramago, que me pediram para escrever nas comemorações do ano passado, texto que fez parte de uma exposição na Universidade Popular do Porto dedicada ao nosso Nobel. Pequena e humilde recordação do único momento que estive perto de personagem tão imensa, e homenagem a essas oportunidades, que eram tão raras no meu crescer. Para ler aqui.
Depois deste corpo, a Newsletter passa a ter um espaço fixo para partilhas. Vamos a elas.
Partilhas
Comecei esta newsletter como uma extensão da minha página virtual, um produto da minha afirmação pessoal enquanto escritora. Mas de modo algum deixei de ser leitora — pelo contrário, com a escrita de ficção tornei-me leitora mais ávida, mais atenta e mais consciente — ou de ser albergue de inquietações que, no passado, deram corpo a muitos emails colectivos. E continuo a gostar de partilhar isso tudo.
Por isso arranco esta primeira Newsletter-de-cara-lavada com a partilha de um livro que conheci por acaso, daquela forma que eu, supersticiosamente, considero prenúncio de relações duradouras: eu, na livraria, e um livro desconhecido de súbito a piscar-me o olho. Não há como resistir. Lá ficam os livros não lidos na estante, a ver este passar por cima de todos. Premeio sempre a coragem tremenda do livro que se atravessa no meu caminho sem medo de desdém ou atropelamento. Chama-se este, Reading the World.


Ann Morgan. Reading the world — How I read a book from every country.
Trata-se de um livro sobre uma aventura: a de ler, num ano, um livro de cada país do mundo. É uma reflexão sobre as reflexões que surgiram à autora, as suas dúvidas e escolhas, e um balanço, à distância de uma década, do que ela ganhou e do que nela se transformou, bem como menção a alguns desses livros. Elogios ao papel dos tradutores, espanto pela existência de países sem literatura, e confissões como esta “the richness of human variety had never been as real to me as it became that year” (a riqueza da variedade humana nunca tinha sido tão real para mim como se tornou nesse ano). No meu livrinho de leituras, dei-lhe 5 estrelas. Não sabia do que estava à espera quando o comecei a ler, mas devorei-o em poucos dias. Não precisava que a autora me convencesse da mais-valia que é ler livros de outros países, principalmente aqueles que pouco conhecemos, mas ela colocou as coisas tão direitinhas, que me apercebi de outra coisa que devia ser óbvia: a importância que temos, como leitores, na sobrevivência da nossa própria literatura. Não há volta a dar-lhe. Diz ela que os responsáveis pela atribuição do Nobel relatam que as maiores contestações ao vencedor do Prémio Nobel da Literatura geralmente vêem… do país do laureado! Fiquei surpreendida confesso, porque achei que era só Portugal... mas não, parece que é da espécie humana. Precisamos de um artista morto e bem morto para lhe darmos honras e unanimemente fazermos vénias ao talento. Bom, chateou-me de tal modo ler isto que um dos meu objectivos enquanto leitora este ano é dar-lhe na geração viva de escritores do nosso país. Porque sem leitores, ficamos sem literatura e sem a nossa voz. Passamos a ler o mundo — porque a febre da leitura, essa, não creio que se esgote nunca — apenas pelas lentes dos outros, dos que conseguem ter livros à venda no mundo inteiro, que vêm quase todos da mesma cultura, que vêem o mundo e o tecido humano de uma forma própria — interessante quando é uma entre muitas, redutora quando é só ela. Acompanham-me?
No Instagram, para quem me entende, estas são iniciativas que me proponho acompanhar: #lerosnossos #12emportuguês, #leremportuguês e, também, porque mesmo dentro dos vivos e dos mortos isto faz diferença #lermulheres.
Maria Judite de Carvalho. Tanta Gente, Mariana.
E eis que isso me traz aqui. À menção a uma escritora que já não está connosco, mas que nunca teve em vida o mérito que merecia. Apanhou-me completamente desprevenida, quando a descobri este mês. A maravilhosa Maria Judite de Carvalho. Perdoem-me bater na mesma tecla, mas não entendo como possa ter sido tão silenciada, a não ser pelo facto de ser mulher. Digam-me o contrário se souberem justificar de outro modo. E façam-se um favor: leiam-na. Mesmo não estando viva.
Notícias
A terceira rubrica deste novo formato de Newsletter fica dedicada às novidades. Por exemplo, a próxima trará as datas em que vou estar em Portugal no início do mês de Março, a falar de A Menina Invisível. Preparem a agenda e, quem, sabe, talvez nos cruzemos num dos lugares do pequeno périplo: Faro, Porto e Braga. Ficarei radiante se assim for!
Entretanto, termina este fim de semana um mês de leitura conjunta de A Menina Invisível, no Instagram. Para quem cresceu tímida e amadureceu insegura, para quem o grande receio de escrever para o público era precisamente aparecer em público e falar em voz alta do que tinha sido escrito no silêncio da intimidade, foi uma interessante descoberta. Gostei de o fazer, de dissecar o livro, de ler excertos, de prestar homenagem aos livros e autores que me inspiraram ou me contaram como aconteceu. Os vídeos ficam disponíveis aqui, para acompanhar a leitura de quem o faça a seu tempo. O encontro final de Sábado não ficará gravado: falaremos de todo o livro, e quem o leu entenderá bem porquê. O encontro virtual vai acontecer às 12.30 de Sábado dia 4 de Fevereiro e o link para inscrição, no linktree da Guerra e Paz Editores, está aqui.
Para acabar
Para acabar, sempre uma frase escolhida das leituras do mês. Fica aí em baixo, depois da despedida, que será sempre mais ou menos assim:
Boas leituras!
... andamos agarrados a uma máquina que nos dá acesso a todo o conhecimento acumulado da humanidade, e no entanto usamo-lo para tirar fotografias de animais de estimação e agredir pessoas que nunca conhecemos. (tradução minha de um comentário partilhado por Ann Morgan, em Reading the World)
Se gostou de ler, e deseja receber a Escrita e Outras Coisas no seu email, subscreva aqui: