Descolonizar a mente
Hoje, venho falar de um livro e de como me ajudou a clarificar a reorganização das minhas leituras prioritárias.

Somos todos e todas, no intenso milagre da nossa existência, meras peças descartáveis nas mãos dos senhores do mundo. Pretos, brancos, amarelos, vermelhos. Assim nos dizemos, esses todos e todas, sem ser fieis à paleta, e a conceder-lhe uma hierarquia que não vive nela. É o branco que reina. O arco-íris é uma mistura complicada para cabeças monocromáticas.
Como cordeirinhos, deixamos que nos encerrem em currais de moral conveniente e em espiritualidades de praça pública. Assim divididos, impedem que nos abracemos. Vestem-nos de fardas e de mentiras. Somos valiosas, necessários, somos tudo, porque sem nós, não há peças no tabuleiro dos jogos de poder. Sabem o quanto é preciso mentir para nos convencer. Porque ai! deles, se um dia víssemos a verdade por detrás das mentiras. Mas acreditamos.
Estamos cansados, ou entretidos.
Não percebemos a nossa importância, e não temos a determinação que eles têm. Sossegados, abrimos a boca e comemos dos ódios que nos dão, e que não são nossos, e das paixões que nos cegam.
Ocorre-me isto tudo e mais, quando leio a Susan Abulhawa. E quando vomito em verborreia o pensamento, ocorre-me como as nossas escolhas de leitura nos podem ajudar a manter a lucidez que nos querem tirar. Ou nos podem apenas guiar e entreter pela escuridão dos dias que hão-de vir. Penso na importância de destruir as narrativas que nos separam e em como o mundo visto da minha casa, a Ocidente, precisa da outra metade para reproduzir a geografia. Como o Douro precisa de ser visto de Gaia e do Porto. Como o Tejo precisa de ser visto de Caxias e de Belém. Como o bairro onde vivi precisa de ser visto do apartamento de luxo e do bairro de lata que o ladeia. A cartografia exterior global precisa das suas várias dimensões, ou é uma mentira.
Tal como a cartografia interior. Porque me leio mulher num livro escrito por uma mulher, ou num livro escrito por um homem, e sou diferente. A escritora olha de dentro, das sinapses do sentir e do sangue, enquanto o escritor observa a pele.
Cartografia global.
Éramos milhões na rua em 2023, a dizer NÃO. Os nossos governos disseram que sim, invadiram, lançaram bombas, mas elas caíram apenas nas notícias saneadas dos jornais. Sem vidas amputadas, carbonizadas, esventradas, sem traumas nem ódios, vinganças, orfandade. Assunto arrumado. Na altura não vimos, como vemos hoje, a paisagem do outro lado. A janela da casa do lado oriental onde as bombas caíram. Ai! deles, se um dia víssemos a verdade… E agora, vêmo-la? Em nome de quê e para quê caíram aquelas bombas. E as de hoje. São diferentes?
“I find that reporters and writers who come here don’t actually want to listen to me or hear my thoughts, except where I might validate what they already believe.”
Cartografia interior.
Visto de dentro, o corpo de uma mulher é uma carcaça, dentro da qual vive o milagre. Visto de fora, o milagre são as curvas que o compõem e a mulher é só o seu corpo, e só ele interessa, e toda uma moral se constrói à volta dele, e à volta do seu uso. A mulher absorve essa moral… mas e se não o fizer? Que força tem a mulher que a descarta. Talvez imensa. Porque a moral nunca serviu a liberdade de uma mulher. A mulher que Susana Abulhawa constrói não a absorve, e o milagre interior não murcha, quando usa o corpo como sobrevivência.
“Honor is an expendable luxury when you have no means or shelter in this fucking world… We are not all blessed to receive a good education and inherit what it takes to live with some dignity. To exist on your own land, in the bosom of your family and your history… Some of us, Madam Honor, end up with little choice but to Fuck. For. Money.”
Descolonizemos a mente, através dos livros que lemos. Orientemos (literalmente) o que lemos. Andamos a namorar o fim, a dar cabo da humanidade e do planeta, separados pelas narrativas que nos dividem, nos cegam de mentiras, nos levam a apoiar os actos mais condenáveis. É preciso juntar a perspectiva da minha janela à janela do outro, descobrir o que nos une. Descolonizemos a mente. Ler vozes oprimidas para entender a opressão. Ler mulheres para entender mulheres. Susan Abuhawa faz as duas coisas neste livro. Pode começar-se por aqui.
“Eastern music is the soundtrack of me, and dancing is the only nation I ever claimed, the only religion I comprehend. When I see women “belly dance” to music they don’t understand, in clothes of people they do not know — or worse, disdain — I feel they are colonising me and all Arab women who are the keepers of our traditions and heritage.”
Susan Abuhawa. Against the Loveless World
Ou pode também ir-se mais atrás. Ela vai, no livro. Resgata James Baldwin, figura marcante do movimento de direitos cívicos nos EUA, a quem “rouba” o título do livro. E cita-o, nestas poderosas palavras com as quais termino esta Escrita e Outras Coisas num formato um pouco fora do habitual.
“There is no reason for you to try to become like white people and there is no basis whatever for their impertinent assumption that they must accept you. The really terrible thing, old buddy, is that you must accept them. And I mean that very seriously. You must accept them with love. For these innocent people have no other hope. They are, in effect, still trapped in a history which they do not understand; and until they understand it, they cannot be released from it. They have had to believe for many years, and for innumerable reasons, that black men are inferior to white men. Many of them, indeed, know better but, as you will discover, people find it very difficult to act on what they know. To act is to be committed, and to be committed is to be in danger.”
O negrito é meu.
Até breve. Vou ler.