Despedidas
A poucas semanas de abandonar a Malásia, uma partilha pessoal. Memórias fotográficas, celebrações, pertença e solidão.
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A poucas semanas de abandonar a Malásia e de dizer adeus ao país onde vivi durante quase uma década, faço balanços, peso aprendizagens e armazeno metros de nostalgia no peito. Tarefas solitárias e quietas, para que tudo se faça e guarde nas melhores condições. Sou portadora de um cérebro atulhado e tenho tendência para um desarrumo mental que uma constante organização espacial tenta compensar.
Nestas semanas finais, em que se impõem socialmente as festas de despedida, dedico-me também a adiá-las sem prazo, com propósito oculto de cancelamento. Não gosto mesmo nada delas. Acho-as tão genuínas como flores de plástico, e não sei se sempre foi assim que as vi, ou se este cinismo indecente ganhei aqui, com a repetição do seu vazio.
Tenho um constante debate filosófico com as despedidas e com a forma como empurram a celebração da amizade e dos bons momentos para o fim dos dias, para os segundos antes da porta se fechar, já o pé na soleira da solidão. Eu tento fazer precisamente o contrário e estar demasiado cansada de celebrações para organizar uma em grande, chegado o dia do fim. A vida celebra-se em vida. Além de que espalhar celebrações por vários momentos, em vez de as guardar para o último dia, ajuda a contornar ratoeiras manhosas da vida.

Lembrei-me disto há uns dias, quando a meio do jogo de futebol australiano, a minha equipa — detentora dos piores resultados do campeonato há anos — ganhava à equipa que lidera o campeonato. Ao meu grito e salto no sofá, e sim, dança à volta da mesa quando o golo nos colocou à frente (no futebol australiano, cada jogo tem uma média de vinte golos e este ano já perdemos um jogo por mais de dez, pelo que a importância de um golo é muito relativa), o meu filho de onze anos avisou-me, como se eu não soubesse, que era cedo para celebrar. Eu respondi-lhe que era o momento exacto, porque Se não agora, quando? Quando perdermos? E a verdade é que não ganhámos. Também não perdemos, mas empatámos, e nesse momento final, em que quase aconteceu a vitória, mas mais uma vez ela nos escapou, o apetite de celebração tinha perdido ímpeto. Já não ocorria a ninguém saltar do sofá.
Conter a celebração para o fim apenas nos rouba a certeza de festejarmos.
Não é ingenuidade, nem ignorância, é uma decisão reflectida. Não guardo a celebração para as despedidas, nem para o fim do jogo, nem para o fim da vida. As amizades e os golos vivem-se no dia-a-dia, com as pessoas que nele escolhemos (e elas aceitam) incluir e de quem, na verdade, não nos despedimos nunca, mesmo quando deixamos de viver no mesmo país.
O resto, são flores de plástico.

Quando era adolescente e pensava no que queria ser e fazer da minha vida, tatuei vários cadernos com esta frase:
Posso arrepender-me do que fiz, mas não me quero nunca arrepender do que não fiz.
Escrevi-a para me avisar a mim própria de que não me perdoaria se não agarrasse eu as rédeas do meu caminho. Não me perdoaria ser levada pela corrente a um destino que não escolhi, sem experimentar chegar até outro lugar mais desejado. Falhar seria perdoável, ele pode sempre acontecer no desenlace da tentativa, mas não o descanso indolente à sombra do lamento de quem nunca ousou abrir asas.
Claro que não tinha noção, quando escrevia, do meu privilégio. Aliás, ter verdadeira noção do privilégio é coisa difícil. Por todo o lado onde viajei e vivi, conheci e lidei com a humanidade, não sei se vi algum dia a humildade ter, em massa, o mesmo protagonismo da inveja. E sem uma, e embalada na outra, é difícil conseguirmos situar-nos bem no mundo e na vida.
Não reflectia, apenas agia, ao escrever, a partir da minha percepção do mundo. Não sou filha de violência, pobreza, ou opressão, e as asas do meu privilégio, intui na tatuagem de papel, são presas e fechadas em parte por mim, pela minha cobardia, insegurança, por uma herança cultural absorvida no meu corpo de mulher.
Não sei porque me ocorre isto quando reflicto sobre a Malásia, mas ocorre-me. Ou talvez saiba, mas são razões muito minhas.

Despeço-me da Malásia, onde passei quase uma década de vida. Onde fui várias pessoas e de onde saio outra ainda. Dez anos de aprendizagem acelerada, porque quanto mais diferente o contexto, maiores as possibilidades de o fazer.
Por circunstâncias da vida que não controlo, e porque numa família nunca somos já só nós próprios, a despedida é murcha como um empate. Não há euforia das últimas visitas aos lugares onde fomos bastante felizes. Lá está: é sempre bom saltar do sofá e celebrar o momento exacto em que se está a ganhar o jogo, antes do resultado final cancelar a festa.
Não sendo pessoa de encontrar nas despedidas o momento certo das celebrações, sou, contudo, de lhes reservar um lugar privilegiado para reflexões mais profundas. Erro meu, porque também com elas devia fazer o mesmo que com as celebrações. Não o fiz na adolescência, mas talvez possa ainda tatuar assim um caderno: Não deixar reflexões para o fim, elas são úteis desde o início.
Ainda vale a pena fazê-lo. Pensar e reflectir a fundo são requisitos fundamentais para a aprendizagem, coisa que gosto bastante de fazer e que vou ser convidada a fazer não tarda, no início de uma nova etapa na minha vida. Aprender não só do exterior, mas do interior, abrir portas, arejar conclusões arreigadas e ideias feitas de superfície, porque pó e mofo também vivem dentro, nos quartos e esquinas da mente.
Na Austrália, vou fazer melhor do que fiz na Malásia, porque olho para trás e sei que podia ter conhecido melhor este país. Podia tê-lo explorado mais e a fundo, aprendido a língua, decifrado melhor a sua tri-polaridade. Distraí-me. Não abri asas, nem janelas a tempo. E agora, na despedida, é tarde. Agora, já só sobram flores de plástico.

Na Malásia, distraí-me porque me fiz expatriada, e levei algum tempo a desfazer-me. Quando cheguei, abriu-se uma bolha, e eu entrei, e fiquei rodeada de outros expatriados. Não migrantes, notem! Expatriados. Na Malásia nunca fui migrante, como os trabalhadores das obras e as criadas. Fui expatriada.
Instalei-me confortavelmente nesta bolha durante um par de anos e observei, por dentro e por fora, como o ser humano tão facilmente cega perante o tal privilégio e como normaliza as injustiças do mundo. Passam a ser tão inevitáveis como farinha no pão.
Dia-a-dia de jantares e convívios, em casas com piscinas e empregadas a tempo inteiro, todas das Filipinas, excepto umas poucas, quando o essencial é pagar o menos possível, vindas directamente de uma aldeia qualquer das montanhas da Indonésia em regime de semiescravatura. Confesso um fascínio inicial que não me permitiu dar imediato nome às coisas. Pressentia algo errado em todos estes dias descontraídos, cuidadosamente vividos à superfície, como verniz aplicado nas unhas sem nunca tocar a pele.
Confesso uma fraqueza, muito humana, de querer agradar e pertencer. O sentido de pertença é afinal fundamental ao bem-estar, e por isso as identidades são tão fortes — e quanto maior a cobardia do indivíduo, o medo da solidão, a desconfiança de fraco valor individual, maior o poder que elas adquirem. Mas o conforto que o sentimento de pertença oferece torna-se tóxico para o ser, se para o manter for necessário despir a pele e virá-la do avesso. Eu fui cartografando, apalpando terreno dentro da bolha, estabelecendo caminhos por onde podia seguir, a agradar, sem me encolher. Os limites foram inicialmente óbvios.
- Fim de estrada na vizinha que se queixa de que na Malásia, ao contrário do Dubai, se dá demasiada liberdade às criadas, que têm direito até a guardarem o passaporte, um convite a fugirem quando lhes der na gana. Não despedirem-se, note-se. Não deixarem de trabalhar com quem as explora tanto quanto pode. Fugirem.
- Inversão de marcha na outra, cuja empregada Filipina trabalha 24 horas por dia, 7 dias por semana, com o salário miserável cativo durante dois anos, sem direito a usar telemóvel ou sair de casa, não vá ela saber que há vida fora dos muros da casa. E fuja, a ingrata!
Tudo isto foi óbvio. Mas depois de estabelecidos os primeiros caminhos possíveis, os restantes começaram a causar problemas crescentes, com o passar dos anos. Colocadas em situação de privilégio, quantas são as pessoas que, em vez de o aproveitar de forma mentecapta, decidem espreitar fora da bolha e questionar a sua participação numa matemática de injustiças?
Afinal, não basta cartografar o óbvio.
Aprendi a sério, muito. Destes anos, escrevi mesmo nova tatuagem em papel, à qual dou tanto valor para os anos de vida que me restam, como dei àquela da minha adolescência até aqui: Deixar de querer, ou aceitar, pertencer, à custa de forçar um agrado. Mais tarde ou mais cedo, esse agrado forçado cresce num desagrado insuportável. Passada a dormência, intrometendo-se o mundo e a vida, a solidão passa a viver dentro dessa pertença fingida. E a mim, a solidão que verdadeiramente me assusta, é essa solidão na multidão.
Não tenho medo de falar de política, nem de me identificar como sendo de esquerda. Sou de esquerda não num Partido, mas numa concepção do mundo onde o indivíduo não se sobrepõe à comunidade, a humanidade não tem raças nem castas, e as fronteiras são um mal desnecessário. Em última análise, as pátrias não são mais do que comunidades imaginárias que nunca se deviam sobrepôr ao planeta e à humanidade. Na apologia da riqueza individual, do mérito descontextualizado, da gloriosa pátria, encontro sintomas de um corpo doente. São vários os comprimidos que disfarçam esses sintomas, permitindo apenas a funcionalidade temporária, até a doença por tratar atingir dimensões irreversíveis.
É a minha esquerda. Podemos debater, e é saudável fazê-lo.
Não tenho medo de falar de política, mas estou rodeada dele. Dizem-me que não se fala de política à mesa, mas o único resultado de não o fazer é que, quando um dia se faz, se desaprendeu de como o fazer. Tanto se reprimiu a prática que a conversa sai da estrada em três tempos e esbarra em fanatismo de claques, e logo se decide que o melhor é apostar no caminho inane da coscuvilhice. As ideias que vale a pena discutir, e que devíamos discutir, porque somos cidadãos e temos o dever de o fazer, ficam guardadas, pouco polidas e pensadas, nunca confrontadas de forma inteligente. E aos poucos, na distracção e na coscuvilhice, abrimos caminho para perdermos os direitos e liberdades que ainda temos e que às vezes, perdoem-me a sinceridade, pergunto-me se merecemos.
Mas se não tenho medo de falar de política é, no entanto, isso que faço durante anos, a insistir neste vício melado de achar que é bom e saudável pertencer, mesmo que só à superfície. Por isso, na Malásia, mesmo depois de ter rebentado a bolha, ainda me surpreendeu o silêncio de túmulo que se fez à minha volta quando vesti um keffieh e comecei a ir às manifestações contra um genocídio. Não querem ir? Acredito que não seja fácil perceber todas as implicações do que está em jogo, entender que o que acontece na Palestina com a nossa cumplicidade serve de ensaio aos autoritarismos que aí vêm. Está tudo feito para que não se veja o que se tapa, da propaganda intensa à promoção insana e desregulada das alienações. Mas mesmo só ficando à superfície, a determinação em não querer entender nem ver, em empurrar o sofrimento do outro para longe do meu privilégio, não revela tecido humano de fraca qualidade? Flor de plástico, enfim.
Levo comigo esta lição, de que não basta, em teoria, não ter medo de falar de política. É necessário implementar a teoria. Não só para não continuar a errar na cartografia, mas também.

Nasci e morri expatriada na Malásia. Foi uma experiência inesquecível e enriquecedora. Não saio daqui a mesma pessoa que há dez anos aterrou no Aeroporto Internacional de Kuala Lumpur e isso é maravilhoso, pois para quê viver tantos anos como os que vivemos, se não para afinar coisas dentro, que nos permitam pensar e agir melhor.
Em breve, parto para a Austrália. Lá, vou afinar mais coisas, na minha quinta década de vida. Tenho curiosidade em saber o que vai mudar, como vão crescer os meus filhos e o que esta viagem lhes trará. Como família, que desafios nos esperam. O que vamos aprender, de nós e do mundo. Como pessoa, que cartografia me espera.
Isto, sim, não me importo de celebrar. Não a despedida, mas o novo início, quando tudo é uma promessa e uma possibilidade de vitória, principalmente contra a equipa campeã.
“Privilege not only blinds you to oppression, it blinds you to your own ignorance even when you notice the oppression” Nikki Kendall, Hood Feminism — Notes from the women white feminists forgot
importante texto para quem reconhece a sorte que lhe calhou. o que interessa não será a sorte mas o que fazemos com ela? como olhamos, sequer, para ela? um dado com muitos números e lados e que a razão não explica como calha. os corpos doentes que falas nasceram doentes ou tornaram-nos doentes?, esta é a questão que tenho discutido durante esta semana de choque. vivemos em pleno exercício de testes aos limites. a faixa de gaza é o rascunho do grande livro que está a tentar ser escrito pelos romancistas de cordel, enfermos maiores do mundo. nós, com filhos trazidos a este mundo por nós, seremos os mais preocupados com o entretenimento que cegou a maioria dos doentes. força, continua, porque a caneta também uma luta.
Esta tua fã, que se delicia e reflete sempre com a tua maravilhosa escrita, deseja-te o melhor do mundo, do outro lado do mundo :). A Austrália só tem a ganhar ao receber-te.
Mil beijos e, espero que, até breve!