Em Istambul, com Orhan Pamuk e muitos gatos
Reflexões livres, embaladas pelas palavras de Orhan Pamuk e adornadas a gatos, muitos gatos.
A caminho de Kuala Lumpur fizemos uma escala de dois dias em Istambul. Uma pequena viagem que começou com as palavras de Ohran Pamuk que li ainda no avião, antes de assentar pés na cidade. Através das suas descrições, na obra com o nome da cidade, tomei não apenas um contacto prévio com o que me esperava, mas foi-me entregue um privilegiado acesso ao invisível.

Sou o tipo de viajante que se entretem e deslumbra com o visível, aquilo que o Homem constrói para enganar o tempo e mentir eternidade: estruturas de peso, dimensão e magnificência. Mas procuro ir sempre além da beleza de pedra e mármore e vasculhar o invisível que as paisagens humanas segredam.
Pamuk conta-me, nas páginas das suas memórias, que mais do que qualquer outra cidade, Istambul requer que se preste atenção à sua vida interior.
“É sobretudo em Istambul que os visitantes devem esquecer que uma cidade não é composta apenas pelas suas paisagens, mas também pelas cenas que se representam no interior das casas.”
Istambul, Memórias de uma Cidade. Orhan Pamuk. ed Presença. Tradução de Filipe Guerra
Voar
Na minha experiência, que é limitada ou vasta dependendo de com quem se me compare, não há cidade que não o necessite. O viajante é que pode decidir se quer ou não saber. Pode achar que quer apenas desfrutar sem se sentar a ouvir, ou porque não tem tempo, ou paciência, ou porque a ignorância lhe serve e não veio para aprender, ou porque tem medo. Legítimo. Como seres humanos, temos muitas vezes medo. Trata-se de uma emoção refinada nos nossos sentidos, um cais onde chegam e de onde partem muitas terminações nervosas, num tráfego tão abundante que o cérebro muitas vezes não sabe o que fazer dele. Tudo o que é estranho ou novo desembarca neste cais.
No caso do conhecimento e das ideias, o medo protege muitas vezes as nossas certezas. O que é estranho confronta-se com elas e pode vacilar as bases ideológicas do mundo onde assentamos pés, onde nos erguemos tão orgulhosos e seguros. Deixar que se desmantele o chão é aterrador, mas só com ele desmantelado conseguimos voar.
Cidades e pessoas
Leio as palavras de Pamuk, o convite a espiar para dentro das janelas, para o interior das casas, e lembro-me de todos os lugares onde já fui. Com espírito de descoberta, todas as cidades visíveis têm uma riqueza invisível que lhes dá dimensão. As cidades são como as pessoas. A beleza exterior precisa da interior para ter consistência e dimensão, senão é só mais uma cidade, como uma pessoa é só mais uma pessoa, sem individualidade nem milagre.
Embora na verdade Istambul, mesmo só observando a superfície, dificilmente pudesse ser só mais uma cidade:

Capital de dois impérios — Constantinopla no Bizantino e Istambul desde o Otomano — e, antes disso cidade dos grandes Impérios da Antiguidade, construída ao longo dos milénios à beira rio e mar, confluência de águas e culturas, é de uma beleza visível absolutamente deslumbrante. As ruas têm o cheiro do tempo e torna-se fácil esquecer os conselhos de Pamuk. A mente, na verdade, falha a descrevê-la em palavras.
Estrangeiros
Diverte-me que Pamuk, para descrever a Istambul que ele não conheceu, a que já era antes dele ser, recorra a relatos de vários ilustres visitantes europeus, artistas e escritores que vieram, com mais ou menos honestidade, procurar em Istambul o Orientalismo. Diverte-me porque fiz o mesmo quando procurei descobrir o Portugal e a Lisboa do século XIX para construir um cenário fiel ao tempo em A Menina Invisível. Fui à procura destes relatos de estrangeiros e aconteceu-me o mesmo que Pamuk confessa: deixei de ser eu a estrangeira.
Sou estrangeira em Portugal há muito tempo, mas sou-o mais, como todos somos, à terra que pisamos em tempos antigos ao nosso nascimento. Ao lê-los, contudo, a estes relatos, passei a sê-lo menos. Quem leu A Menina Invisível talvez se lembre do jantar que Gonçalo dá a um professor inglês. Foi inspirada nas leituras que fiz, e a frase com que Gonçalo remata a cena saiu-me da alma e relata esta sensação: “Este homem, hoje, fez de mim um patriota!” Fui eu que falei, mais do que Gonçalo, a procurar vingar-me de todos esses relatos, porque como disse Elena Ferrante numa entrevista, escrever é também uma forma de vingança.
Portugal, de facto, sofre algo parecido ao que Pamuk relata ser a crise de identidade de Istambul. O olhar que se lhe atira a Norte não corresponde à sua identidade. Somos Europeus, mas nem sempre somos ou fomos vistos assim, enquanto Europa não se limite a uma entidade geográfica, mas a uma referência cultural. E, tal como Istambul, seria bom que fizéssemos as pazes com a nossa individualidade porque nos perdemos quando queremos ser o que não somos, nem precisamos ser. Nem, cada vez acredito mais nisto, devemos ser.
O estrangeiro descreve o que o local não vê, aquilo de que ele não se apercebe. O “pitoresco” que não é mais do que a normalidade. O artista estrangeiro observa esse pitoresco e depois decide se quer ir além, se quer voar, ou se apenas veio para se meter mais dentro dele próprio, como este professor inglês, como a maioria dos estrangeiros que li. A maior parte — descobri para Portugal como Pamuk descobriu para Istambul —, não veio para voar. Anotei esta frase do livro:
“A aproximação de Istambul ao Ocidente graças aos navios a vapor e ao caminho-de-ferro começou a dar ao viajante ocidental a possibilidade — ao encontrar-se de repente sozinho nas ruas de Istambul —, o luxo e o prazer de se interrogar sobre o que tinha ido fazer àqueles lugares infames. A partir de então, nessa etapa onde se conjugavam a ignorância e o snobismo, a audácia criadora e a proibidade, os viajantes “cultos” do tipo de André Gide, em vez de tentarem compreender a diferença de culturas, a estranheza dos usos e costumes ou as características estruturais do país e da cultura, descobriram a reivindicação do direito a distraírem-se, a divertirem-se e a serem felizes em Istambul. Seguros de si ao ponto de proclamarem que, se não dizem nada de interessante sobre a cidade é porque Istambul (não eles) é aborrecida e sem originalidade, esses turistas escritores do último período mostram que as vitórias militares e económicas da civilização ocidental conferiram aos seus turistas um orgulho e uma confiança que nem os intelectuais mais críticos conseguem dissimular, e que eles próprios acreditam também do fundo do coração que o Ocidente é uma referência para toda a Humanidade.”
Istambul, Memórias de uma Cidade. Orhan Pamuk. ed Presença. Tradução de Filipe Guerra
Pergunto-me, e não levem demasiado a sério nem me citem, se esta diferença não é o caminho aberto pela indústria do Turismo. Já não saímos de nós para entrarmos no mundo do outro, como fazia quem deixava conforto e partia à descoberta. Afundamo-nos mais em nós, quando entramos em território estranho. Não procuramos o invisível. Nós, os privilegiados que viajam por este mundo, não sabemos que temos asas e nunca aprendemos a voar. Poluímos o planeta para nada.
Intensidade e tempo
A minha passagem por Istambul foi breve, apenas dois dias. Foi uma paragem a caminho de Kuala Lumpur, ao final de um mês de estadia em Portugal. Mas a intensidade de uma estadia depende do que lhe dedicamos. Como a vida, no fundo: os seus vários momentos, todos passageiros, não dependem da duração para ficarem vincados. Um minuto pode cobrir mais terreno de vida do que um ano.
Nesta viagem, para a tornar marcante para lá das horas, tive, claro, o privilégio da companhia de Pamuk, cujo misterioso museu fui visitar. Quem já tenha lido — eu não li — O Museu da Inocência, saberá que há um bilhete numa das suas páginas finais. O meu, já está carimbado.
Hei-de perceber o museu, quando ler o livro que está na minha mesa de cabeceira — o que não quer necessariamente dizer que será lido em breve, uma vez que a minha mesa de cabeceira serve para acumular a minha vontade de ler e grita o tempo que não tenho em volumes que se multiplicam mais depressa do que o pó.
Gatos
Da Istambul de hoje, visitada em dois dias, agora que já aterrei em Kuala Lumpur, apetece-me partilhar um quadro pitoresco do dia-a-dia da cidade, à boa maneira de turista. Vejam, é que depois de ser terra de impérios, Istambul voltou a ser conquistada. Desta vez, por uma nova espécie: o felino. Os gatos são donos da cidade. Gatos vadios, mas não esgazeados, esfomeados, doentes… esses não são donos, são meros ocupantes indesejados e existem um pouco por toda a parte. Em Istambul, são reis. Gordos e bem tratados, passeiam-se nas ruas, entram nas lojas, dormem nos mostradores e nas exposições, entram onde querem e lhes apetece. Até os cães sabem que é assim, e apresentam-se de cabeça baixa, derrotados, submissos à espécie vitoriosa.
A cidade e os seus habitantes vivem em harmonia com eles. Não se apercebem do raro que é, do particular que existe nesta banalidade dos seus dias. Uma harmonia que me faz pensar como nasceu e se desenvolveu. Porque é tão diferentes nos outros lugares. Mas se dois dias dá para explorar e absorver, é pouco para pensar e conhecer.
Com certeza haverá entre os leitores e leitoras muitos amantes da espécie felina, por isso acabo esta crónica meio disparatada com fotografias das ruas de Istambul, na presença dos seus mais ilustres habitantes.