Memórias de um Skoda
Em tempos, quando o aeroporto de Faro não tinha muitos vôos, a Ria Formosa já sofria com o Skoda do meu avô.
Em tempos, tal como o Concorde fez tremer os prédios de Lisboa, o Skoda do meu avô fez tremer a Praia de Faro. Logo ali à entrada, no final da ponte, o automóvel arrancava com estrondo de aeronave e a vizinhança começava o susto que logo terminava na lembrança: Ah! É o Skoda do senhor Paiva. Tantas vezes se ouviu aquele bárbaro rasgar do ar que aposto que a fauna da Ria Formosa se terá habituado aos sobressaltos ainda antes da explosão das low-cost. Em tempos, quando o aeroporto de Faro não tinha muitos vôos, a Ria Formosa já sofria com o Skoda do meu avô.
Ao meu avô, o ruído não o incomodava, nem o desconforto, nem a rigidez, nem a pouca potência — o meu avô, de resto, era capaz de conduzir com a caixa de mudanças em primeira durante quilómetros. Nada disso eram elementos relevantes num carro. O importante num carro, como em tudo o resto, era de onde vinha. Para o meu avô, a qualidade de tudo na vida, do material ao imaterial, era determinada de forma geográfica: lado de cá do muro, uma merda! lado de lá, uma máquina, um esplendor, um exemplo a ver, ler, comprar. Por isso, conduzia com orgulhosa teimosia aquela máquina ruidosa e desconfortável, e nela nada via mais do que um milagre de engenharia. Não, o seu Skoda não era desconchavado. Desconchavado era o carro do meu pai, aquela bosta capitalista que ele conduzia, e que se não estou em erro era um Renault 21 — já não o saudoso Dois Cavalos, onde fazíamos viagens épicas de tejadilho aberto, eu e a minha irmã no banco de trás, pezinhos esticados para meter a cabeça de fora e os cabelos ao vento, mais depressa, mais depressa, porque eram os anos oitenta e éramos todos livre e irresponsáveis e ninguém sabia para que serviam os cintos de segurança.
Menina e moça me sentei assim num Muro, a observar Este e Oeste, as vanguardas e as bostas, a viver o lado de cá deslumbrada pelo lado de lá, a pensar nas coisas da humanidade e nos sonhos dos Homens.
A dada altura, juntou-se a mim uma boneca de cabelos tão loiros que eram quase brancos. Chegou-me de madrugada, numa noite em que dormia no sofá-cama da sala dos meus avós, aconchegada ao cheiro que tinha, como se fosse manta, feita de retalhos de arroz doce, canela, creme nívea e jornais Avante! empilhados na escrivaninha que a minha avó não tinha autorização para arrumar. Foi o meu pai que a colocou ao meu lado, tapada até ao pescoço pelos mesmos lençóis que me cobriam. Eu estremunhei sem acordar e só de manhã a vi a sério, no seu vestidinho azul e rosto de cerâmica, a boneca que vinha do outro lado do Muro, porque o meu avô tinha levado o meu pai à União Soviética, e ele tinha trazido, de surpresa, esta boneca que colocara ao meu lado.
Na alegria daquela manhã, pensei que o meu pai também ia comprar um Skoda e íamos passar a ser conhecidos pelo estrondo dos nossos carros e por cantarmos juntos, em uníssono e à janela, o Avante, Camarada. Entendam aqui que a minha Condessa de Ségur foram as revistas Sputnik, que se espalhavam pela casa dos meus avós, por cima e por baixo dos Avantes, com páginas brilhantes e fotografias a cores. Foi nelas que aprendi a ler, abertas ao colo, dedo indicador a juntar letras em palavras, a avançar aos tropeções pelas histórias e legendas. Li-as todas, perdi-me em contos de fadas e, entre os meus doze desejos no Natal, sei que reservava sempre um para a paz no mundo e outro para que todos os países pudessem ser como os países da União Soviética.
O meu pai dormia ainda, quando a abracei, essa minha boneca de cabelos tão loiros que eram quase brancos, e lhe contei que conhecia, das revistas, as ruas limpas de onde ela vinha, os rostos felizes, a falta de fome, de miséria, e a preparei para o que ela ia encontrar deste lado de cá. Em Faro, dizia-lhe, as ruas eram sujas e cheirava a cocó de cão e na Guarda havia gente que vivia em casas escuras que gelavam nos Invernos frios de nevões e granizo, e que só às prestações conseguiam comprar móveis na nossa loja.
O meu pai dormia... e pergunto-me agora, e a despropósito, onde? Porque a casa parece-me enorme na memória, mas para lá da sala só havia um quarto, uma cozinha e uma casa-de-banho. Não sei onde dormíamos todos, os meus avós, os meus pais, a minha irmã, onde cabíamos ou como se multiplicavam as divisões da casa para nos acomodarem, e ocorre-me, neste intervalo do texto, que o passado tinha espaços imensos e que o presente os encolheu e tenho súbito receio do que o futuro fará com eles.
Quando o meu finalmente pai acordou, foi de Renault 21 que regressámos à Guarda, sem cantarmos à janela, mas com as bonecas soviéticas, uma minha, outra da minha irmã. Do Renault 21, o meu pai saltou para um Mercedes, a luzir ainda mais capitalismo, e nunca houve na nossa casa edições de Avantes e Sputniks. Ao meu pai, faltaram-lhe sempre lugares onde instalar altares e nunca gostou de se ajoelhar, mesmo quando as dobradiças não empenavam. Do seminário para onde a mãe o enviou em jovem, à espera de o ver regressar padre, veio recambiado no fim do primeiro ano, tão ou mais ateu do que quando partiu, com recomendação explícita de lhe encontrarem outra vocação. Também da URSS regressou tão ou menos comunista do que quando partiu. A minha avó paterna e o meu avô materno, cada um na sua religião, padeciam de um fervor beato que lhes permitia ignorar os remendos mal cosidos de um sonho. O meu pai, desassombrado de ideais, via com inegável nitidez as fragilidades e incoerência que espreitavam por debaixo das batinas e se estilhaçavam sem remédio no chão afiado da realidade. O seminário não o enganou nem o seduziu, tal como as luzes de um programa cuidadosamente seleccionado em Moscovo não o cegaram.
E eu, pergunto-me? Eu tenho a infância nos tecidos do corpo, respondo-me. A minha alma marinada em arroz doce e canela, a minha imaginação fundida com as páginas das Sputniks. Herdei o desassombro de um lado, mas vive em mim a menina que gasta desejos de Natal a pedir a paz no mundo em vez de uma pista de carros (sim, as meninas também pedem pistas de carros).
O meu avô deixou de ver o telejornal quando o Muro caiu. Dizia que era tudo propaganda americana. A televisão avariou-se, ou ele avariou-a, e durante algum tempo deixou de haver um ecrã numa caixa grossa na casa de Faro, na sala, ao pé da escrivaninha desarrumada. Depois acabou por comprar uma, que não sei onde a foi desencantar, mas sei que às portas do século XXI o meu avô conseguiu trazer para casa uma televisão a preto-e-branco. As notícias voltam a entrar na sala, mas tão descoloradas como os tempos. Comprar uma televisão a preto-e-branco foi talvez a sua forma de fazer um manguito ao presente: queres ser real, mas eu faço-te assim, baço e desfocado, como uma fotografia de antigamente.
O meu avô tinha a quarta classe quando chegou a Lisboa vindo da aldeia, no agonizar da República e no início da ditadura. Viveu a pobreza de um país miserável e em algum momento abraçou o Partido e todos os seus ideais, e misturou-se tanto com eles, que não havia um senhor Paiva sem ele. A dada altura, porque a censura da televisão não funcionou, ficou quase surdo, de uma surdez selectiva, feita de não limpar a cera dos ouvidos para poder esticar o pescoço e ouvir apenas o que lhe interessava. O que era impossível era retirar dele as convicções, e tenho pena de não ter descoberto como, em que dia e de que forma, mergulhou tão fundo que nunca mais lhe foi possível vir à superfície.
Mas não se esquivou a perceber o fim a cores, porque não estava em sua casa, mas na do meu tio, naquele Natal de 1989 em que o ecrã da televisão levou a todas as casas as imagens do fuzilamento do casal Ceaușescu. Imagens que bruscamente e sem aviso se intrometeram naquela languidez pós-cabrito, naquele piscar dourado das luzinhas da árvore, naquela suave felicidade da reunião familiar. A televisão estava sem som e o meu avô via em silêncio, até que vimos todos, e parámos, e alguém aumentou o volume, para que se ouvisse também. O fim brutal de um homem brutal, mas naquele momento, só um velhote caído num chão de pedra, a quem eu vi parecenças com o meu avô, que também achava parecido com o Álvaro Cunhal, no desenho do rosto e no olhar claro.
O meu avô não ficou para o convívio da tarde, nem para as sobras do jantar. Foi-se embora, sozinho, pálido, sem alento nem fome, no desconchavado carro que vinha de um país ao lado do país do ditador que estava estendido no chão e que era parecido com ele. E de repente o ruído do Skoda ao arrancar, quando o ouvimos na sala, pareceu menos um Concorde e mais um trator, e o lento avançar mais lento ainda, e pareceu-nos que a seguir à curva que abandonava o terreno e se metia a caminho da cidade, se tinha desconchavado de vez.
A minha boneca de cabelos tão loiros que eram quase brancos ficou em Faro por essa altura, entregue à minha avó, que tomou conta dela como se fosse a bisneta que nunca chegou a ver. Cabelos lavados com amaciador, roupa e corpinho de trapos mergulhados em sabão duas vezes por ano. Mostrava-ma sempre que eu chegava a Faro, com delicado orgulho, e assim me fui sempre lembrando do dia da minha infância em que a recebi. Já só havia, há muito, uma boneca, porque a da minha irmã não tinha tido tratamento diferente só por vir da União Soviética, e tinha acabado, sem cerimónia e como todas as outras, com os olhos arrancados e o cabelo cortado às tesouradas.
Quando os meus avós morreram e a casa foi limpa dos vestígios de uma vida, achei que a tinha perdido de vez. Mas a verdade é que ainda sei onde encontrá-la. Está à minha espera em cima do muro onde continuo a sentar-me e onde ainda ouço o estrondo do Skoda e vejo o meu avô sorridente ao volante. E de onde lhe aceno um adeus e o vejo partir, no lento e barulhento arrastar daquele monte de ferro e aço em direcção ao Sol na terra, certo de caminho glorioso. Não lhe grito que à frente só há um pôr-do-sol e nunca um amanhecer. Deixo-o ir. Não só porque nunca valeria a pena dizer-lhe o contrário — não iria esticar o pescoço para me ouvir e, quando muito, arriscar-me-ia a começar a transmitir em preto-e-branco —, mas porque o meu pai também não tinha razão. Não era do lado de cá que o futuro radioso estava.
Do lado de cá, afinal, estava também um imenso pôr-do-sol e a promessa de uma penosa escuridão.
Silêncio nas redes
Quem me segue nas redes sociais terá notado o silêncio na partilha do que de mim se trata. Avisei há semanas, quando por me conhecer antecipei o o que aí vinha, que o meu perfil nunca será apenas sobre livros e escrita. É verdade que só por isso o tenho, que talvez se não tivesse sido publicada nunca me tivesse metido no Instagram e já tivesse soprado para longe a poeira do Facebook. Não tenho muitos seguidores e desses, alguns com certeza terei perdido, enfadados por tão pouca partilha de mim, e tanta partilha do horror que já se sabe e não vale a pena saber mais. Cada um lida com as violências do mundo à sua maneira, e talvez venha ao engano quem me segue ou me lê com vontade de escapismo. O que é claro para mim, talvez por ter amigos palestinianos (mas quero acreditar que não só e apenas), é que se me tornou impossível ocupar espaço público com as irrelevâncias do meu dia.
Ainda tentei, porque sei que se não apareço, escrevo, partilho, o algoritmo não se compadece e virar-lhe costas é desaparecer e condenar o que escrevo a maior invisibilidade. Comecei a escrever um ou outro post, a partilha de uma leitura, mas o processo doeu-me logo no início. Trabalhei fotografias e textos a tentar convencer-me da relevância do que fazia, mas nunca cheguei ao fim, porque nunca consegui. A minha consciência é tão afiada que não me sento nela sem que me alfinete o rabo. A dor! Já me pica na antecipação do gesto, ainda o rabo se apresenta a centímetros da ponta.
Terei perdido potenciais leitores ou seguidores, terei ficado mais invisível? Talvez. Mas o curioso, e talvez irresponsável, é que não parece importar-me muito. Pelo contrário, sinto que desde que tenho um perfil como escritora, nunca fui tão completa e verdadeiramente a Rita Cruz que sou. É assim, e temos mesmo muita pena.
“… my peaceful sleep was not bound to my pillow: my sleep was bound to the warm embrace of my country, it was bound to visiting my beloved mother, it was bound to the chatter I shared with my sister… My peaceful sleep was because of the small service I used to do for my country… because of a sense of freedom one can feel only in one’s own country.”
“My Pillow’s Journey of Eleven Thousand, Eight Hundred and Seventy-Six Kilometres” de Farangis Elyassi (Tradução de Zubair Popalzai). Conto publicado na colectânea ”My Pen is The Wing of a Bird - New Fiction by Afghan Women”