Menina dos olhos grados
A bem ou a mal, não creio que consigamos fugir ao que somos sem forçar e danificar o âmago da nossa existência.
Apesar de tudo, tenho orgulho em não caminhar hoje no mundo da mesma forma que o fazia há um ano. Orgulho em não desiludir a menina que fui, a dos olhos grados, como me diziam — e sonhos ainda maiores, mas isso as pessoas não viam e não sabiam. A menina que no início de cada ano, quando fechava os olhos para pedir desejos, um por cada passa, mais do que bicicletas e roupa nova desejava a paz no mundo, e que ninguém passasse fome e toda a gente fosse feliz. E só a seguir, uma pista de carros com controlo remoto. Havia hesitação, concedo, sobre a ordem, talvez colocasse a pista de carros a seguir ao fim da fome e antes do início da felicidade, não tenho a certeza. Sei, contudo, que a pista de carros deu lugar a um tear, a um jogo mecanizado de sapos e bolas, e a outras tantas coisas, mas que, enquanto acreditei que se fechasse os olhos e comesse passas com convicção os meus desejos podiam ter algum contributo na ordem do mundo e das coisas, a paz do mundo foi o primeiro de todos eles. Como achei que era, naturalmente, para toda a gente.
Há um ano que tenho dificuldade em escrever. Que perco a inspiração para a ficção diariamente quando me sento a olhar para a actualidade, gráfica e honesta como nunca foi à distância. Rebento, vísceras adentro. Agora mesmo, antes de me sentar a escrever, Israel bombardeia mais um Hospital. Há sempre guerrilheiros nos hospitais, nas mesquitas, nas escolas, nas universidades, dentro das ambulâncias, ou a conduzi-las e quiçá mesmo debaixo delas, porque debaixo das ambulâncias também deve haver túneis que elas protegem. A bomba cai e vejo a cabeça e um corpo envolto em chamas, o braço ainda ligado a uma embalagem de soro, os gritos quase audíveis no silêncio de uma fotografia*. A imagem é captada pelo telefone de uma pessoa que diz não precisar do registo para se lembrar do que viu, que o que viu será pesadelo para mais do que uma vida.
Porque vês isso, menina dos olhos grados que cresceu. Porque não viras as costas, como eu faço?
Porque é difícil não ver. É preciso fazer um esforço consciente para o fazer, e a isso eu não estou disposta. Vejam, o mundo intriga-me, o ser humano fascina-me. Por isso acabei por chegar à escrita em dada altura da minha vida, depois dos Direitos Humanos, depois da fisioterapia, depois da maternidade. Estou no mundo de corpo inteiro, cabeça incluída, e ele mete-se por mim adentro, pelos meus olhos que são talvez grados para o ver melhor. E sinto que há responsabilidade no que se escreve, em tudo o que se escreve, e se não entendo, se não sei, como arriscar sequer escrever?
E então vejo. E continuo a ver. Vejo as crianças que estão a brincar nos escombros das casas. Não há jardins, não há parques, não há onde brincar senão os escombros das casas onde as camas onde se sonhava, caíram por cima dos corpos e esmagaram os sonhos. Nesses escombros brincam, até que um drone que as sobrevoa dispara sobre elas e as mata. Também aconteceu no espaço de tempo em que eu dormia, antes de me sentar a escrever. Mecanismo fantástico esse, o drone, que talvez permita a salvação a quem o opere, talvez o proteja da escuridão mental e da eterna assombração da vítima. Divago assim, porque enquanto o meu estômago grita na linguagem das vísceras, ao meu cérebro interessa-lhe o que se passa com aquele que opera o mecanismo. Aquele que já destruiu os edifícios onde cresciam os sonhos e agora caça com instrumentos de metal os pequenos corações que ainda batem. Aquele que é responsável por crianças de doze anos decidirem escrever testamentos.
Gostava que a natureza humana fosse diferente, mas há muito tempo que transbordei aquele corpo de menina e que sei que afinal são poucas as pessoas que, quando acreditam que se fecharem os olhos com muita força os desejos se concretizam, colocam a paz à frente de uma pista de carros.
Caminhar neste mundo com o peso deste ano… Alguém escreveu outro dia, e um colega sírio que conheci nas lides da escrita repetiu-me, que não é possível a um árabe estar neste mundo da mesma forma que estava há um ano atrás. Porque é evidente o valor nulo que uma vida árabe tem não apenas no xadrez do poder mundial, mas na mente de uma vasta proporção da população mundial: a população ocidental. E eu disse-lhe que havia uma coisa que ele devia ter conta, e é que para uma parte significativa dessa população ocidental, também é impossível continuar a caminhar neste mundo exactamente da mesma forma. Porque a desumanização não afecta apenas o desumanizado, mas aquele que rege os seus dias por valores acima dos materiais. Para uma parte significativa da população ocidental, judeus (principalmente) incluídos, que não se cansa de afirmar que nada disto é feito em meu nome, este ano voltou a mostrar o quanto a essência da guerra é o bolso de poucos e o quão necessário é, para que esses bolsos encham, que a dose certa de propaganda e silêncio construa uma narrativa que permita a desumanização.
Tenho orgulho em não ser hoje exactamente a mesma pessoa que era há um ano. Tenho orgulho nas horas em que não consegui escrever. Orgulho no tempo que me leva a criação deste terceiro romance que será, quando o terminar, mais responsável do que corria o risco de ter sido. Orgulho das horas que roubei ao sono e ao descanso para acompanhar, investigar e compreender a História — não como é contada pelos vencidos, mas como é manipulada por eles. Orgulho das horas que dei a protestos e voluntariado ao movimento BDS. Porque também leio, antes de me sentar a escrever, que o Ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, se queixou publicamente em Agosto de como a pressão internacional os impede de matar à fome os Palestinianos, “ainda que tal possa ser justificável e moral, até que nos sejam devolvidos os nossos reféns.”** A pressão internacional somos nós. Não são os governos, não são os meios de comunicação, em grande parte cúmplices. Somos os que saímos à rua e colocamos keffiehs ao pescoço, mesmo que esteja um calor de morrer e não vá nada bem com a roupa. Nós, que há um ano não pisamos este planeta da mesma forma e não mais o poderemos voltar a fazer, com a mesma ligeireza e ignorância. Porque uma vez que se sabe, já não se pode voltar atrás e não saber.
Creio que, nesta vida, não conseguimos fugir muito àquilo que somos sem que nos custe alguma coisa dentro. E eu sou a menina de olhos grados que aos cinco anos já suspeitava que a paz no mundo era mais importante do que aquela pista de carros, mas que não confessava a ninguém que o fazia, porque também suspeitava, sem querer pensar nisso muito a sério, que não era nessa ordem que as pessoas que a rodeavam colocavam as coisas. Essa menina que fui, não desiludo hoje, na pessoa que continuo a ser.
Depois, se há coisa que aprendi, é que não se sobrevive sozinha neste mundo. E quando as máscaras caem e a maquilhagem se desfaz e as cortinas revelam os bastidores e tudo o que fica é uma desilusão e um susto, o remédio é sempre o mesmo. Agarro nas palavras da minha amiga escritora e académica Sarah Wijesinghe, ao meio na fotografia abaixo, e digo-as para mim, em português: mesmo num mar de adversidade, encontra uma ilha onde a tua voz tenha eco e te sintas em casa. ***

*Pela dignidade e pela memória, porque as pessoas não são números, nem religiões nem nacionalidades: era um jovem, tinha dezanove anos, e chamava-se Sha’ban al-Dalou. Morreu incinerado, com mãe, numa tenda instalada no terreno do Hospital al-Aqsa. O pai, duas irmãs e o irmão mais novo todos sofreram queimaduras graves. O último, de 10 anos, acabaria por falecer dias mais tarde. Elena Stein, da organização Jewish Voice for Peace, relembra-o aqui, num artigo do Guardian, onde explica a manifestação que se seguiu e como, enquanto filha de um sobrevivente do Holocausto, prendam-na quantas vezes quiserem, não vai ficar em silêncio.
** Citado pelo jornalista Chris Hedges, vencedor do Pulitzer Prize, no artigo “Extermination Works. At first” que escreveu para o seu Substack que aconselho a seguir.
*** Do seu livro “The Illusions of Freedom”
Como sempre os seus textos fazem a difrenca, tudo o que esta acontecer no mundo... a nossas vidas tornam-se muito mais tristes. Como podemos sentir a mesma alegria no dia a dia quando olhamos para as imagens do terror que se esta a passar em Gaza, Libanon , Ucraina. Aqui na Suecia temos criancas a matar outos seres humanos so para se sentirem um pouco mais importantes e por dinheiro para puderem ter as mesmas possibilidades de uma vida normal. Quando perguntaram a um destes jovens de 14 anos porque matou ele respondeu pelo dinheiro, para comprar roupa e comida para a minha familia .❤