O rosto dos lugares que fomos
Na Suécia, a recordar Dharamsala e a juntar antes e depois. A olhar para trás, com a comunidade portuguesa, numa viagem pelas suas memórias, e a olhar para frente, com o Clube das Mulheres Escritoras.
Durante muitos anos, a Suécia para mim teve o nome de Emma e paisagem de um rosto firme, talhado no frio. Dizem que não há amizades como as da adolescência, mas eu digo que não — o que não é surpresa, porque não precisam de me ler muito para desconfiarem que não visto chavões que me limitem movimentos e perturbem horizontes (já é tarde, ainda é cedo, estou velha, não é para mim…). Há amizades sólidas como rochas, que sobrevivem erosões temporais e espaciais mais do que as da adolescência. Acontecem em qualquer idade. Para mim, aconteceram ou por rasgos de empatia (ou só encontramos almas gémeas na adolescência?) ou pela partilha de uma aventura, ou de um momento marcante. Amizades de adolescência são paixões fortes e deixam marcas, mas não se pode confiar que o tempo não as vá trair. Estas, da qual a Emma que durante anos mais do que uma pessoa foi um país inteiro é representante, são outra coisa que não arrebata. Coisa séria e simples, que se instala sem perturbar, e aquece o peito como um gato enroscado aquece o colo.
A Emma e eu conhecemo-nos a caminho do sopé dos Himalaias. Vindas de Nova Deli, numa carrinha que fazia a viagem de noite até Dharamsala. Éramos as duas únicas estrangeiras naquela carrinha atulhada de sofás de veludo desbotado e autocolantes de Deuses Hindus. Na altura, lembro-me que os conhecia, as suas histórias e as razões de terem cabeça de elefante ou vários braços... Já me esqueci de tudo, e não sei se esqueci porque a minha memória é péssima, ou se quero sempre aprender tudo e demais, e o meu cérebro é uma loja de velharias onde tudo cabe, mas é impossível encontrar o que se procura.
Sendo eu e a Emma as únicas caras brancas da carrinha, logo no início da viagem o rapaz que verificava bilhetes encontrou-me no último assento, abriu os lábios num sorriso vermelho de pan e largou a fazer gestos e sinais, a falar alto, e, entre todos naquela carrinha, ficou assente que a única lógica possível era que quem estava sentado ao lado das caras brancas mudasse de assento para que elas ficassem sentadas uma ao lado da outra. Nada percebi. Só me vi convidada a levantar-me, a caminhar na direcção da frente da carrinha, onde um lugar agora vazio esperava por mim. Irritou-me, aquilo, lembro-me, e só não voltei atrás, a insistir que o meu lugar não era aquele porque não quis ofender a rapariga que ali estava sentada. A olhar para ela, verifiquei que também não estava contente. A Emma, que eu estava prestes a conhecer, não se ri como eu, assim por tudo e por nada, para ser simpática, agradável, para pedir desculpa, para pedir um café, para dizer obrigada, porque pisei o pé ou mo pisaram a mim. A Emma, talvez porque o rosto talhado no frio é assim, mais sólido e rígido, não gasta sorrisos a torto e a direito. Sentei-me, obediente, mas de mau humor. Devo ter sorrido, claro, porque sou o oposto da Emma, mas não fiz questão de ir além disso. Porque queria descansar, não me apetecia conversar e, como disse, irritou-me que o simples facto de termos cara branca nos identificasse como iguais.
Não me lembro de quem começou conversa. Deve ter sido aos solavancos. Porque eu não tinha vontade e porque a Emma também não gasta palavras. Só fala se quiser dizer alguma coisa. As conversas com a Emma estão limpas de rodeios. Mas diferentes como somos, descobrimos em duas ou três frases que tínhamos muito em comum. Não éramos a franja do turismo hippie que me deixava doida na Índia. Eu ia a caminho de um projecto de direitos humanos no Sri Lanka. A Emma vinha de um projecto humanitário no Camboja e ia visitar os monges tibetanos a quem tinha dado aulas de inglês alguns anos antes. A cara branca desfez-se. Estávamos ali sentadas juntas porque, enquanto seres humanos, tínhamos muito que partilhar. Não nos voltou a faltar conversa, até até ao dia em que disse à Emma que ela, que não sorri facilmente, tem sempre um rol de coisas a dizer e nunca se cala, e ela respondeu que, se eu quisesse, ela não falava durante um dia inteiro, e eu disse que apostava que ela não conseguia… e eis que não lhe ouvi palavra durante 24 horas. Ao fim de duas ou três horas pedi-lhe, implorei, que falasse outra vez, que já lhe dava vitória, que se confirmava que sim, que ela era capaz… nada. Cheguei a colocar-me de joelhos. Esqueci-me, quando fiz a aposta, do frio. Da hibernação nórdica. De como a convivência com o silêncio lhe seria confortável. A Emma podia estar sempre a falar ou estar sempre calada. Podia estar acompanhada ou sozinha. Eu não. A Emma só falou no dia a seguir, serena, como se nada se tivesse passado naquelas longas horas em que me engasguei de nadas.
Agora, quase vinte anos depois, seria diferente. Pelo caminho, fiz um retiro de silêncio e sobrevivi. Aprendi a importância dele numa vida de ruído. Mas por muito que queiramos, nunca seremos capazes de voltar inteiros aos lugares que vivem da memória.
Quando chegámos a Dharamsala, depois daquele encontro forçado no autocarro, eu e a Emma acabámos a partilhar quarto. A Rita ia à aventura, sem nada marcado, sem saber que a data coincidia com o início das leituras anuais do Dalai Lama. Caso não saibam, Dharamsala é a sede do governo Tibetano no exílio. Estava tudo cheio… mas a Suécia organiza e Portugal desenrasca. O quarto da Emma tinha duas camas e com ela passei duas semanas extraordinárias. No final, havemos de prometer uma à outra que voltaremos a Dharamsala. Rio-me agora, claro, porque sei, como já disse, que é impossível voltar a esses lugares. Eles só existem na loja de velharias que carregamos connosco. Cá fora, aos poucos, já se desfizeram. Quanto mais ardente a imaginação, mais ávida a fogueira que os destrói.
Nessa Dharamsala que existia em 2004, a Emma introduz-me aos Momos tibetanos, e eu como-os quentinhos e acabados de fazer, como se não houvesse amanhã. Aprendo a fazê-los, com um cozinheiro tibetano, um refugiado com uma história tremenda de sobrevivência que na altura escrevi, tal como a receita, e se pudesse viajar no tempo guardava-as devidamente e assegurava-me que não as perdia. Nessa Dharamsala, vou com ela ao mosteiro onde os monges vivem. Não sei muito bem como o fazíamos, nem quem nos acompanhava, mas sei que entrávamos por ele adentro até ao quarto onde os monges também faziam coisas que não deviam fazer: tinham uma televisão, com uma antena caseira, onde conseguiam apanhar e ver as telenovelas chinesas, e riam-se como crianças traquinas. E depois de entrarmos escondidas mosteiro adentro, saíamos com eles, e agora eram eles que se escondiam, e juntos subíamos ao primeiro andar de um pequeno bar, onde havia mesas de snooker e onde uma noite foram todos apanhados. Gostava de ter fotografias de tudo isto, para me lembrar melhor dos detalhes. Dos rostos gentis, tão inocentes, tão vulneráveis a um mundo que os seduzia, mas que era e é tão implacável, impiedoso, cruel. Ao longo dos anos perguntei-me muitas vezes o que teria sido a sua vida. Quase nenhum estava ali por vocação. Eram monges como no Portugal antigo se era padre: porque nos mosteiros a sobrevivência estava assegurada. Esses rostos, dos quais só vagamente me lembro, continuam a ser a minha paisagem do Tibete.
Muitos anos depois disto, a Emma veio a Portugal, quando eu e o Roger vivíamos em Faro, tínhamos uma casa onde íamos passar o resto da vida e o nosso pequeno Marc tinha nascido. Também é um lugar onde não conseguimos voltar. E depois nunca mais. Em quase vinte anos, vimo-nos apenas mais uma vez. E agora, que já revirei Estocolmo do avesso e me meti por Malmö, que depois de tantas conversas, passeios e rostos, a Suécia já não tem o nome de Emma, vou reencontrá-la, e construir outro pequeno lugar, outro refugio onde a imaginação pode voltar e enroscar-se e ronronar de felicidade.
Partilhas
Clube das mulheres escritoras
Sozinhos ou sozinhas, somos muito menos do que somos quando nos juntamos. E não digo no número, que é óbvio, mas naquilo que conseguimos alcançar. Às vezes custa-nos a entender isto, em sociedades individualistas, onde andamos constantemente à procura de heróis e símbolos de conquista independente. Como se valêssemos menos em sociedade. Acredito profundamente que não é assim, e acontece que não estou sozinha.
Esta é uma iniciativa absolutamente fantástica que se começou a desenvolver há poucos meses atrás. E se, de repente, as mulheres escritoras em Portugal dessem as mãos e se entre-ajudassem? O mercado é pequeno, as pessoas não lêem, é difícil escrever e quase ninguém vive da escrita. Todos queremos ter vozes literárias em Portugal, todos nos babamos e crescemos dois centímetros quando nos louvam, mas depois apoiamos pouco ou nada, ou apoiamos sempre os mesmos, como se a variedade valesse de pouco. Mas a vida não avança com lamúrias. Avança a olhar para a frente e a contornar obstáculos. Estejam atentos, porque o grupo promete sacudir o marasmo e trazer debate e frescura para o panorama literário. As vozes são variadas, os géneros também. Em Portugal, escreve-se bem, de diversas formas, mais e menos comercial, ficção, romance, fantasia, romance histórico, há de tudo. Porquê um grupo de mulheres escritoras? Cada uma tem também as suas razões. Para mim, claramente, os desafios são diferentes, num país onde ainda falta sacudir o resto de pó de uma sociedade fortemente patriarcal, onde há cinquenta anos atrás as mulheres ainda apresentavam obras com pseudónimo masculino. Que eu o tenha pensado, a determinada altura, antes de publicar o meu primeiro romance, para mim diz tudo.
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Prolongar Portugal na Suécia
E foi o associativismo também, de outro tipo, que me trouxe estas semanas à Suécia.
Vim recuperar as histórias da emigração portuguesa neste país e das associações que lhes permitiram prolongar Portugal na Suécia. O convite veio da FAPS (Federação das Associações Portuguesas na Suécia), a federação que as agrega e há 43 anos as apoia. Tem sido intenso, lindo, frio. Tem sido uma viagem por mim adentro, nas memórias dos outros. Regresso daqui a poucos dias à Malásia, e regresso diferente, como sempre fico quando essa tal loja de velharias recebe material novo e se re-arranjam prateleiras.
Cuidado. Uma viagem pode sempre ser o começo de muita coisa. Mais ainda, do que a escrita de um livro já é.
“O ódio pode ser uma emoção profundamente estimulante. O mundo torna-se muito mais fácil de compreender e muito menos assustador se dividirmos tudo e todos entre amigos e inimigos, nós e eles, bem e mal. A forma mais fácil de unir um grupo não é através do amor, porque o amor é difícil. Traz exigências. O ódio é simples.”
Fredrik Backman, “Bear Town” (tradução minha)