Realidades distópicas
As novidades vêm atrasadas, enfiadas entre viagens e trabalhos sobre os quais falarei no próximo mês. Hoje, falo-vos do haze num pequeno desabafo e, apropriadamente, de realidades distópicas.
Desabafo cinzento
Preciso de desculpa e hoje encontrei uma. É o haze. Já vos falei nele, em tempos passados. A neblina do passado e do futuro que tapa o sol, embacia o céu. Dejectos do progresso humano, danos colaterais, enfim, da presença humana neste planeta. Partículas finas que envenenam os pulmões, congestionam o nariz, irritam a pele. Eu acho que também afectam o estar, o pensar, a disposição.
Chegou há alguns dias, insinuou-se num céu cinzento que parecia não deixar ver bem as boas abertas, que arrastava um véu pelo azul que deixava de o ser e passar apenas a parecer. Se não chover hoje ou amanhã, e arrastar todas as poeiras para o chão, e passar a envenená-lo a ele, em vez dos nossos pulmões, vamos voltar às máscaras, não as simples mas as KN95 e similares, com filtros e respiradores — vamos voltar a saber tudo sobre elas. Vamos voltar a fechar as janelas. Vamos ligar os purificadores. Os miúdos vão outra vez deixar de correr e fazer exercício ao ar livre, porque volta a ser mais saudável estar dentro de quatro paredes. Parece uma distopia? Não. É o futuro aqui tão perto. A raça humana é uma praga,.
As poeiras, por sua vez, tão pequenas que não as vejo ao perto, só ao longe, quando se acumulam e roubam o horizonte, metem-se no meu pensamento. Não é só que o embaciam também e não vejo bem quando me meto por ele adentro, mas porque estão presentes em tudo, agarradas aos momentos como pó aos fios de um tapete. Se penso, se escrevo, se preparo um trabalho. Como não? Basta levantar os olhos e senti-los sujos. Na minha casa, não consigo trabalhar se a minha mesa não estiver limpa, o meu quarto arrumado. O que fazer desta sujidade imensa lá fora, destes dejectos de ganância e estupidez. Escrevo como se gritasse.
Há anos atrás, escrevi esta crónica sobre o haze na Visão online. Dei-lhe o título de Uma Ganância de Cortar a Respiração. Então, sabia de onde vinha. Desta vez, ainda não há uma explicação oficial. Sinto que neste país, democracia fingida, tudo se esconde e o importante nunca se diz, só se sussurra. Como em qualquer ditadura decente. Um dia viremos a saber, contudo, porque os sussurros acabam sempre por fazer barulho. Mas não sei se importará… quantas vezes, nas nossas complicadas vidas, agimos sobre aquilo que sabemos?

Autora do mês
Quem está comigo nas redes sociais já saberá que o Sérgio Almeida fez destaque a esta ilustre desconhecida no Jornal de Notícias. Sou a autora do mês, para este mês de Abril, o que significa uma entrevista em duas partes, publicação de excertos de A Menina Invisível e No País do Silêncio e, para a semana, a opinião sobre A Menina Invisível, que o Sérgio Almeida apresentou na Unicepe do Porto. Tenho muito a agradecer-lhe, porque neste nosso país de poucos leitores, e em que os poucos muitas vezes hesitam em ler o que é novo, estes destaques são preciosos. Obrigada, Sérgio, pela aposta.
Fica aqui um excerto da primeira entrevista. A segunda parte será publicada esta semana, na versão online do jornal.
SA: "A menina invisível" parte de uma situação muito dura com que a protagonista Alice se confronta, mas a narrativa evolui para um tom mais terno e até esperançoso. Vê este romance como uma luta de forças entre o Bem e o Mal?
RC: Custa-me dizer que não, porque entendo da pergunta que o leu assim e não quero apropriar-me do que o romance poderá dizer-lhe, ou a outro leitor que assim o veja. Mas a haver no livro uma luta de forças, para mim, será talvez entre o que queremos que a vida seja e o que ela acaba por ser; entre o que sonhamos na infância e o que encontramos na vida adulta; entre os planos que fazemos e o que deles sobra quando a realidade nos obriga a tomar outros caminhos; entre o que a sociedade nos impõe e aquilo que afinal somos ou queremos ser. O tom mais terno, menos violento, e talvez esperançoso que vai aparecendo no final corresponde à consciencialização de que a derrota nesta luta também pode ser um princípio. Que ela pode servir de aprendizagem do mundo e do ser e revelar outros caminhos e outras verdades.
SA: Em que sentido a escrita representa para si uma forma de explorar os lugares mais inacessíveis da nossa mente?
RC: Creio que uma das razões pelas quais me apaixonei pela escrita da ficção foi o convite a penetrar em cabeças humanas diferentes da minha e dissecá-las. A ficção é para mim, tanto enquanto escritora como leitora, um maravilhoso, inquietante, deslumbrante e importante exercício de empatia.
SA: Quando se escreve um romance em torno de uma personagem como Alice, com que estado de espírito a autora chega ao fim do processo de escrita?
RC: Exausta, tão vazia quanto plena, e num muito delicado estado de desequilíbrio.
SA: Dos restantes personagens, destaca-se pela maldade pura a figura do Carniceiro. Até as figuras mais cruéis podem ser humanizadas?
RC: Engraçado. Se me fosse pedido que apontasse uma personagem com maldade pura, eu diria outra, a quem não dei direito de voz própria, como dei ao Carniceiro. O Carniceiro é precisamente uma figura extremamente cruel que eu procurei humanizar. Dei-lhe voz, para que ele contasse toda a desumanidade do seu crescer. Acredito que somos a soma das experiências que tivemos, do amor que recebemos ou não, do sofrimento e dos abusos que nos foram impostos, e não nos pode surpreender a maldade de quem cresceu sem conhecer outra coisa, e que só com crueldade se fez respeitar. Por isso é tão perigoso este mundo, quando tantos seres humanos crescem na ignorância do que é a bondade, a paz, o amor. A maldade é um cancro que se espalha por gerações, uma herança envenenada que acaba por nos bater à porta a todos, mais ou menos diretamente.
SA: Em ambos os livros a violência é abordada, ainda que de modo diferente. É uma temática que, enquanto criadora, lhe interessa de modo particular?
RC: Creio que a violência me interessa profundamente como pessoa e por isso transborda de mim quando escrevo - tal como as tais preocupações e compromissos sociais de que falámos atrás. Procuro entendê-la, virá-la do avesso, dissecá-la. A violência torna-nos frágeis quando achamos que somos o universo. Despeja-nos a arrogância, torna-nos mendigos, humilha-nos, faz-nos e desfaz-nos. Está infiltrada no quotidiano, nas esquinas da rua e da vida, no interior de conhecidos e desconhecidos, mas eu não a entendo, e isso perturba-me. Não a entendo, mas ela está em todo o lado, e é muito maior do que toda a nossa vontade, os nossos sonhos, os nossos planos.
Partilhas
Tenho enfiado leituras a custo nestas semanas onde o tempo tanto tem escasseado, mas delas, houve tantas que vieram para ficar que me custa escolher uma. Faço-o com a sensação de injustiça a tudo o resto, mas escolho-as porque, já que me vejo mergulhada numa espécie de realidade distópica, encaixam como uma luva nesta newsletter. Imposição do contexto destas semanas, acabaram por ser feitas em inglês.

“The School for Good Mothers”, Jessamin Chan, ainda não tem tradução para português, mas há-de ter, porque temos de ouvir falar muito deste livro. Li-o para um dos meus clubes de leitura na Malásia. Fala sobre a maternidade e o que é ser mãe, as pressões e expectativas da sociedade, das próprias mulheres, a culpa e as acusações levadas ao extrema. Uma história distópica que, como uma boa distopia, coloca debaixo da lupa o absurdo que já existe e aumenta-o, para o tornar bem visível

Para a iniciativa março ilustrado, desenvolvida pelo João Oliveira de na.cama.com.os.livros e a Silvéria Miranda, li uma série de excelentes bandas desenhadas, mas a que ressalvo aqui, e que ontem mesmo vi a adaptação cinematográfica (que também aconselho) chama-se The Death of Staline. Tal como os autores (Fabien Nury e Thierry Robin) confessam num prefácio ao livro, por muito que puxassem pela criatividade, não conseguiriam chegar a todo aquele absurdo. Aconselho vivamente a ler e a ver, não só porque são excelentes, mas porque, já agora, é interessante observar o que resulta de uma sociedade construída nos alicerces no medo. A consequências vêem bater à porta até do seu grande arquitecto, numa macabra comédia real de humor muito, muito negro. A História, tal como o nosso passado, as nossas experiências e sucessos, não é o que queremos que ele seja. É o que foi e o que, não me canso de repetir, convém saber.
“Sabes, Emília, acho que não há porta fechada sem segredo que se queira esconder.”… Às vezes, quando fala, Pedrinho diz coisas que têm muitas coisas lá dentro.
Rita Cruz. A Menina Invisível