Rentrée
Nem é o primeiro dia de Agosto, nem de Setembro, mas as férias acabaram, a escola começou e isso, mais do que qualquer data do calendário, marca um início. De modo que, fora de tempo, aqui estou eu!
Se pudesse, dava-te o meu céu
Abro as portas a uma manhã de nuvens e brisa, verdadeira bênção nos trópicos. À velocidade da bicicleta, que não é muita, o ar sopra tão fresco que arrepia a pele e me alerta para o deleite de estar viva, para o privilégio deste momento fugaz. À minha frente, no parque, segue o meu filho mais novo. Observo-lhe a mochila torta nas costas e a bicicleta que é pequena para ele. Tomo nota de que os joelhos não chegam a esticar, o Quadricípite não contrai até onde deve e a biomecânica não é ideal, muito embora ele não acuse esforço. Conduz a bicicleta aos ziguezagues, brinca com ela. Está contente que seja o primeiro dia de escola. Já estava pronto há mais de um quarto de hora quando finalmente saímos. Diz que vai ser capitão este ano, ou outra posição de liderança semelhante, e não me admiro que o venha a ser. É um destes miúdos que descarrega em casa toda a malandrice, mas na escola, desde sempre, é o braço direito do professor, responsável e de confiança, bem-comportado, aluno exemplar. Há um rapazinho dentro de casa e outro na escola, tão diferentes que quando recebemos o primeiro relatório, já lá vão uns anos, perdemos algum tempo a investigar como nos tinha chegado às mãos o relatório escolar de outro aluno. Analisámos em detalhe tudo, do nome, ao professor, ao email e, quando tudo conferiu, ainda colocámos a hipótese de o professor ter feito um copy-paste do aluno anterior e que vergonha quando se apercebesse! Mas não. Era mesmo o nosso traquinas-de-trazer-por-casa, na até então para nós desconhecida versão rapaz-lá-fora.
Atrás de mim, a arrastar a bicicleta, vem o mais velho. Não quer ir para a escola. Adormeceu tarde, com uma camisola de capuz vestida, tão enfiado nela como se quisesse esconder-se. Talvez ali dentro ninguém o conseguisse encontrar de manhã. Mas encontramo-lo. Sacudimo-lo até se levantar. Não até acordar, porque acordado já está, mas até conseguir que as pernas se mexam e que se levante da cama. Para de seguida se deitar no chão… Já não tem a camisola, veste uniforme, já não está deitado em lado nenhum, senta-se sem cima da bicicleta e pedala, mas continua a esconder-se. Do tempo, do mundo? Um dia, penso, foi uma criança que adorava a escola. Era fácil mudar de bairro, de país. Encaixava sempre com a facilidade da peça certa num puzzle. Como foi o primeiro dia de escola, filho? Awesome, everyone is my friend! Ainda me lembro. Hei-de lembrar-me sempre. Os nosso filhos são um caleidoscópio na nossa cabeça, rasgos brilhantes de tudo o que foram para lá do que são.
Respiro. O ar fresco, tão raro. A ausência de suor na pele. O aperto no estômago que não se desfaz. A vida é tão intensa sempre, tão diferente quando queremos que ela seja igual, tão igual quando queremos que ela seja diferente.
O mais novo chega ao edifício da escola primária. É novo, a inauguração é precisamente hoje. Vão estar separados, agora. Vou com ele, descobrir o sítio onde é suposto deixar as bicicletas e, quando olho para trás, o mais velho não esperou por mim e já seguiu para o edifício do secundário. Ainda o vejo ao longe, a atravessar a rua. Pedala como se estivesse ainda deitado, o rosto no capacete como se fosse capuz. Arrasta a noite com ele e penso para mim que não há nada mais importante na vida do que aprender a largá-la. Não mandamos no céu, nas nuvens ou no sol que nele se instalam. Mas podemos mandar no céu do corpo, na luz que nele decidimos abrir cada manhã, ou na escuridão das persianas que escolhemos não correr. Penso nisto, e penso em como lhe posso dar isto. Como posso tirar de mim este saber, este importante legado, maior que uma casa e um carro. Como colocá-lo de forma que a mente o absorva da mesma forma simples com que, numa caneca ou numa tigela, consigo que o corpo ingira os cereais ou o leite ao pequeno-almoço. Todos os dias. Penso.
Regresso a casa sozinha. Vou ao café. Escrevo. Escrever é, entre várias coisas, uma forma de arrumar o pensar. E, uma vez arrumado o pensar, continuo a escrever. Mas, desta vez, para desarrumar tudo.
P.S. Dia seguinte: o sol brilha, o capacete não é um capuz, a escola não é a morte. Bem hajam os dias que se seguem aos dias.
O problema da frase perfeita
Gosto de ouvir escritores falarem sobre as suas obras, sobre o seu processo de escrita, sobre o seu percurso. Fascinam-me tanto as diferenças como as similitudes. Humildemente, aceito que aquilo que achei a dada altura ser único em mim afinal se repete. Brilhamos menos na vida do que achamos e é sempre bom que nos lembrem que são emprestadas, as lantejoulas com que nos exibimos no espelho da mente. Mais gratificante é reflectir sobre as diferenças. Quando um escritor aborda o processo de forma tão diferente, com dificuldades ou facilidades que me surpreendem, percebo que há uma voz que é minha, feita de uma abordagem própria, com desafios e paixões que, se não únicas, são pelo menos muito pessoais. Há uma verdade que é minha, como há uma verdade que é desse escritor, e dela não nos devemos desviar, nenhum dos dois, porque todas as cedências ao que não grita por dentro são palpáveis na leitura do que se expôs.

Veio-me isto a propósito da entrevista que ouvi com Tan Tawn Eng, um autor da Malásia cujas obras seleccionámos para um dos clubes de leitura em que participo aqui. As obras são monumentais no que descrevem e exímias na pesquisa histórica que lhes dá contexto. A escrita é deliciosa e a intriga genial. Mas… vejo-me a tropeçar na leitura de vez em quando, e parece-me que o faço porque a escrita se serve demasiado a si própria, ou porque a história (menos no mais recente) por vezes se complica tanto que o que podia ser um espaço magistral se transforma numa sala atulhada, onde a beleza do único se dilui e se perde.
O que pressinto, vejo-o explicado sem querer pelo autor, quando na entrevista desabafa como tudo é difícil na escrita. It’s so hard, diz, e di-lo com o alívio de quem descarrega, numa frase, quilos de sofrimento. Tamanho alívio o que repete, com mais ênfase: It’s so bloody hard... A frase perfeita, a metáfora exímia, e por isso… It’s so hard…e eu a pensar. A reflectir nas diferenças. E a descobrir que para mim, é precisamente o contrário. Cada frase mais elaborada serve-me para descarregar quilos de sentir. A escrita deixa-me leve. A frase perfeita só o será, a sê-lo, para mim. Porque descarregou de mim exactamente o que tinha de descarregar. E que talvez o outro, o que lê, não carrega. E que talvez não seja necessária na história que se conta. Talvez distraia, esteja a mais, seja um obstáculo. Talvez seja o que Stephen King tão bem chama de darlings. E o que fazer desses darlings quando se escreve, perguntamos-lhe. Simples, aconselha: se não servem a história, obviamente, kill them!
O que pensam vocês, leitores e escritores desse lado, do valor, ou da coragem, de apagar a “frase perfeita”?

Partilhas
Leituras em português
Tudo na vida é política. Cada escolha que fazemos, cada coisa que compramos, cada opção que tomamos. Tudo tem consequências e repercussões na nossa sociedade. Às vezes esquecemo-nos, ou fingimos descaradamente não saber. Gostamos de pensar que a impotência é mais nossa do que a culpa. Ombros encolhidos que “hoje joga o Benfica!” e ó Zé liga aí a televisão, e eu nada mais posso fazer.
A decisão do que lemos (e onde compramos) não é excepção. Não é difícil perceber, se nisso atentarmos uns segundos, que quando escolhemos ler em português apoiamos a nossa literatura, os nossos autores, e vimos ao de cima, respirar na nossa língua, num oceano de cultura estrangeira. Principalmente quando lemos o contemporâneo, os autores vivos, os que ainda são mantêm de pé contra ventos e marés, no nosso cantinho do mundo, anquilosado e abafadiço. Descobrimos com assombro, quando o fazemos, que temos imensa qualidade e que devíamos todos encher a boca de orgulho e as prateleiras com mais dos nossos. Por isso, como leitora, aqui fica a partilha de três livros nossos, contemporâneos, completamente diferentes, mas que me deram imenso gozo ler, nesta minha decisão política de ler mais literatura portuguesa.
Filipa Fonseca Silva, E Se Eu Morrer Amanhã. Para quem ainda está de férias, quiçá corpo encostado à areia da praia, um livro para ler com gosto e, de certeza, com muito desconforto! Agradável desconforto, contudo, suavizado por essas areias, e por uns mergulhos de mar, porque a Dª Helena é uma inspiração, um alerta e uma forma muito divertida de nos confrontarmos com os espartilhos que a sociedade nos cede e que nós, tão pacatos e obedientes (ou deveria dizer pacatas e obedientes), acedemos a vestir.
Filipa Martins, O Dever de Deslumbrar. E porque falamos em frases perfeitas, encontrei aqui muitas que me agarraram, nesta magnífica biografia de um personagem que tem de estar mais presente no nosso conhecimento da História Contemporânea, Natália Correia — embora saibamos, ou nos comecemos talvez a dar conta, de como é difícil manter mulheres nos anais da História. Atente-se por exemplo nesta recente capa da visão:
Mas voltando ao O Dever de Deslumbrar. A verdade é que bastava Natália Correia, o seu percurso e personalidade pouco ortodoxa, para dar textura e riqueza a uma biografia, mas a magnífica escrita da Filipa Martins torna este livro numa obra maior. Não há a mínima hipótese de não deslumbrar.
Susana Moreira Marques. Lenços Pretos, Chapéu de Palha e Brincos de Ouro. Finalmente, esta pequena maravilha, sobre a qual escrevi aqui e assim:
Coisas cá da casa
E por falar de assombro, assim descreve o António Ferreira a descoberta desta autora desconhecida, no seu segundo livro. Aqui, a vossa estimada, para terminar esta rentrée e me dar ânimo no caminho. Que mesmo no meu céu, que é meu e não o consigo dar por muito que o queira, de vez em quando também chove — como é, de resto, natural e deve ser.
“Que conversas se têm com a televisão ligada? Como é que as conversas — as críticas, as queixas, os elogios, as declarações, os pedidos, as súplicas, as confissões — se alteraram? O que é que as pessoas deixaram de partilhar umas com as outras e até com os estranhos que passam e que já não convidam a parar para falar à soleira da porta ou a entrar para comer? Como pode ser feita a indispensável passagem de testemunho? De que maneira ainda se transmite, oralmente, intimamente, em confidência, a nossa história?”
Susana Moreira Marques, Lenços Pretos, Chapéus de Palha e Brincos de Ouro