Eis que noto que o meu afastamento das redes sociais acabou, sem querer, num trabalho de redecoração mental. A minha cabecinha, que se tinha tornado numa linda sala de bibelôs, cortinas, paninhos de linho, molduras de madeira esculpida, bastante rococó, ficou vazia de adornos. Saiu tudo, não sei bem para onde. Só sei que fui dar com os pensamentos numa sala de janelas abertas e paredes despidas, a pele inteira à mostra. Nesta sala, de espaço e luz, reparo que os pensamentos deixaram de tropeçar, de caírem nas dobras insuspeitas dos tapetes, de abrirem a testa nas esquinas dos móveis, de chorarem cortes de porcelana. É que os pensamentos, quando acontecem, são seres em começo da vida, trôpegos nos primeiros passos, a exigem espaço, cuidado e atenção. Se não têm por onde se mexer em liberdade, crescem deficientes e desadequados.
Foi realmente extraordinário perceber esta transformação inesperada. É óbvio que as redes sociais exigem e sugam tempo que, entregue a elas, não o é a outras coisas, mas não adivinhei que se materializassem também em objectos e móveis que comprometem o desenvolvimento do pensar — ou por fazê-lo tropeçar, ou por lhe limitar os passos.
Nesta sala limpa, onde os pensamentos se espreguiçam e se debruçam à janela, noto que respiro de forma diferente. Inspirar, expirar, coisa simples, processo que ocorre para lá da vontade enquanto estamos vivos, mas que não é sempre igual, que é reflexo das dinâmicas misteriosas e milagrosas do complexo edifício do corpo. Respirar e Pensar, verbos de significados diferentes, profundamente relacionados. Nesta sala arejada e desanuviada onde me sento a observar, anoto que somos máquinas de pensamentos alimentados a respiração. Ou talvez sejamos ao contrário, orquestra de inspirações e expirações dirigidas pela batuta do pensamento.
Máquina ou orquestra, o que sei é que respiro de modo diferente, quando estou sentada à espera do café e não tiro do bolso o telemóvel, e em vez disso observo. E quando, em tempos mortos, pego numa caneta e num caderno, e volto a rabiscar pensamentos de uma forma que há muito tempo não fazia, noto que têm formas diferentes, que são pensamentos que cresceram com o privilégio do espaço. Não sei qual é o começo e qual é o fim. Só sei que saí das redes sociais. E que, à noite, com a oxigenação de um dia inteiro a respirar devagar, iiiiinspiiiiiira, eeeeexpiiiiiiraaaa, pego num livro e deixo-me levar por ele até morrer temporariamente, dessa forma que morremos no sono quando o sono é sinal de vida.

Na Conferência sobre A Palavra Escrita, a Mulher e a Paz, a Joana Bértholo afirmou que, para ela, ler é um acto de resistência à velocidade do tempo. A observação pousou nos meus ombros, achei-a bonita, mas quando a guardei ficou atrás de um bibelô e não voltei a vê-la. Encontrei-a agora e, com atenção devida, apreciei-a devidamente. É que há ler e ler, mas nem todo o tipo de leitura é essa resistência, e eu não tinha permitido que se explicasse antes de a armazenar. Conta-me que o verbo Ler tem relações extra-gramaticais, insuspeitas no dicionário, com os verbos Respirar e Pensar. Que é um verbo muito pouco solitário, apesar da reputação, porque nunca passa grande tempo sem os outros dois. São os três muito interdependentes, e quando fazem coisas juntos, o Ler salta à corda que os outros fazem girar.
A partir desta compreensão dos verbos e das suas relações insuspeitas, observo e noto como é diferente a leitura de um texto impresso, ou de um texto num ecrã. Noto, e lamento. Porque estou convencida que essa pausa que a observação da Joana Bértholo menciona, essa resistência à corrida avassaladora e impiedosa do tempo, só acontece no papel. Lamento, as palavras que só chegam até mim nas páginas de um ecrã. Não é culpa do conteúdo, mas do meio, que os faz serem textos que flutuam à superfície da reflexão, onde não consigo mergulhar o corpo além do joelho. Não rios e lagos, mas charcos baços de ecrã.
Culpo o polegar. Digo que criou o vício de ansiar pelo fim, pela dopamina do Terminado! Visto! Lido! e que é a sua impaciência que comanda quando tenho o telemóvel na mão. Coitado do meu polegar… sou injusta. Que culpa tem ele que eu não consiga que Respirar, Pensar e Ler se juntem em harmonia no meu telemóvel, lugar de vícios, sala de bugigangas onde se tropeça em todas as esquinas. Que culpa tem ele que o resultado seja correr em vez de parar, uma corda a girar sem descanso, e que não seja possível respirar assim, iiiiinspiiiiiira, eeeeexpiiiiiiraaaa, e mergulhar em profundidade com o corpo todo e os três verbos.
Agora que acabei de escrever no papel, transponho as palavras que escrevi para o ecrã do computador. Insiro-as nesta plataforma de leitura e de escrita e quando as enviar, sei que, a muitos, o texto chegará via telemóvel. Não consigo deixar de ter pena que assim seja. Que por estes textos o Ler não passeie em papel, juntando-se em harmonia aos outros dois verbos.
Digam-me. Sou só eu que reajo, fisiologicamente, assim?
Partilhas
Continuamos nos ecrãs e nas redes sociais. Elas, os jogos de computador, o ecrã omnipresente na vida das crianças e adolescentes e o compromisso que representam no desenvolvimento das gerações futuras: na sociabilidade, na empatia, na resiliência e mesmo na felicidade, porque os níveis crescentes de ansiedade na adolescência são uma realidade. Resultado, talvez, do compromisso fisiológico de um cérebro em desenvolvimento que se deixa viciar em dopamina. Assim conclui Jonathan Haidt, após décadas de investigação que o livro que chegou há pouco tempo a nossa casa resume. Em português, A Geração Ansiosa: Como a Grande Reconfiguração da Infância está a provocar uma Epidemia de Doença Mental. E veio com este podcast, do Trevor Noah que decidi colocar a família a ouvir. No fim, os meus filhos não iniciaram a discussão habitual sobre o opressão-a-que-são-sujeitos-nesta-casa-de-ecrãs-controlados-quando-todos-os-amigos-têm-telemóveis. Pelo contrário, abriram a porta e foram, mais contentes do que o habitual, brincar para a rua. Juro que foi mesmo assim… Pese voltarmos ao mesmo no dia seguinte.
Não gosto de ideias fixas e, embora defenda firmemente o que penso, mantenho as janelas sempre abertas, porque o que sei hoje não é o que vou saber amanhã. Por isso, tipo toma lá que já almoçaste, depois de me entreter a maldizer ecrãs, tive de colocar travão e desacelerar na rampa das certezas, porque um video e um podcast me deixaram a pensar num lado muito positivo das redes sociais.
Convido-vos a ver este video e a relembrarem o que aprenderam na escola, nos museus, na televisão, sobre o colonialismo.
Os perigos das redes sociais e dos ecrãs em geral, o condicionamento no desenvolvimento intelectual e emocional são reais. Mas também é real a desconstrução de narrativas controladas que fazem da História uma disciplina de manipulação, mais do que de aprendizagem, que não nos ajuda a compreender o passado, nem a pensar em liberdade. Que não nos dá ferramentas necessárias, antes no-las retira, para fazer deste planeta, no presente e no futuro, um lugar melhor e mais justo para todos.
Neste podcast, The Case Against Logging Off, são levantadas questões relevantes que vão no mesmo sentido. Há um papel real e importante das redes sociais nos movimentos progressistas, não apenas na propagação do ódio.
Da minha parte vou continuar a estar atenta e a pensar sobre isto, mantendo na minha cabeça a sala arejada, os pensamentos livres e as leituras pausadas, a iiiiinspiiiiiirar e eeeeexpiiiiiiraaaar.