Salto sem Redes (sociais)
O apelo do minimalismo tecnológico que confesso com bizarras associações e termino com uma partilha.
Pode não parecer, mas preparo-me para falar de redes sociais. Só que a minha mente gosta de fazer associações estranhas, de colocar à conversa retalhos aparentemente desconexos da minha vida que nem eu sei terem algo em comum. Assim, sendo certo que é sobre o tema das redes sociais que me preparo para falar, eis que a minha mente me coloca outra vez sentada no topo do escorrega amarelo do parque de aventuras onde fui com os meus filhos há uns meses. E já que estou lá em cima, volto a perguntar-me, com espanto e incredulidade, que coisinha má me terá dado para, ao olhar para ele do chão, decidir ser uma ideia divertida atirar-me por ele abaixo em direcção ao lago. Bem, essa parte do lago, mesmo quando vista lá em cima, ainda me parece apetecível com o calor que está. Mas o escorrega amarelo, esse, é um susto de plástico que se desafia a gravidade, atirado a pique da plataforma. Ainda por cima é suposto atirar-me precipício abaixo de cabeça, agarrada a uma prancha. Na melhor das hipóteses, uma sentença de morte.
“Vai, mãe, vai!”
Atrás de mim, o meu filho grita, entusiasmado como se fosse ele sentado na prancha e aquilo fosse um escorregazito de jardim de infância. Como tem uma infecção nos ouvidos e não pode abraçar aquela aventura mentecapta, acha que eu tenho obrigação de o fazer por ele. Eu agarro-me ao corrimão com mãos húmidas de suor e medo. Mentalizo-me que o cordão umbilical já caiu há mais de uma década e que aquilo é mesmo muito a pique!
“Se calhar não consigo…. O melhor é desistir”.
Naquela altura, já tenho a parafernália toda vestida, o colete de segurança atado à cintura, metido entre as pernas, já subi a escadaria toda até ali… devia ter suspeitado do tamanho da escadaria, que quanto mais por ela se subia, mais por ela descia a minha reserva de ousadia.
“É melhor, é.” Volto a dizer, mais alto, para parecer que tenho mais certeza, mas a verdade é que não abandono a prancha. A minha certeza fica-se pelo vinco das palavras.
“Oh mãe, vá lá...” Diz-me ele. E aquelas reticências de desilusão são um bocado incómodas, porque houve um cordão umbilical físico que caiu e outro metafísico que ainda não o fez, se é que algum dia o fará. Mas o que me incomoda mais ainda, é aquele verbo que me sai da boca e pelo qual tenho um ódio fino de alfinete: desistir.
Mal lhe sinto o sabor, fico logo alerta. Meto a razão ao barulho, porque suspeito que o meu suor é o pulsar interno de um medo irracional. Certo? Clarifico que assim seja:
“Nunca ninguém se matou aqui, pois não?”
O homem do parque de aventuras responde-me que não, mas de que estou à espera? Que me diga pois, olhe, agora que pergunta, ainda outro dia saiu uma pessoa a voar fora do escorrega e só não ganhou para o susto porque, está a ver, quando chegou à água, já não ganhava nada…? Quando me responde, o homem ri-se. Achará provavelmente apenas piada à minha pergunta, mas eu meto-me logo a investigar a curva do riso e parece-me que treme na ponta. Que vejo lá qualquer coisa escondida, e que talvez sejam essas histórias que ele não conta, registadas, quem sabe, em documentos guardados a sete chaves no fundo de uma gaveta, as mortes secretas e escondidas que ali se acumulam todas as semanas. Mórbido…
“Vai, mãe!” insiste o meu filho que quer estar no meu lugar e não acredita que eu ainda não tenha escorregado.
Estou numa situação impossível, porque se, por princípio, não vou desistir, por outro a realidade daqueles metros ataca o âmago do meu instinto de sobrevivência. E ir contra ele não é tarefa fácil porque o instinto vive no bairro mais ancestral da mente, antes dela se expandir para os domínios suburbanos do córtex frontal e fazer de nós, discutivelmente, homo sapiens.
Decido, enfim, que só há uma forma de sair dali: pelo escorrega e pela água, agarrada à enorme probabilidade de que não existam documentos escondidos no fundo das gavetas e de que ninguém, por muito improvável que me pareça neste momento, tenha saído a voar para lá dos limites do plástico.
Um, dois, respira fundo, três!… E lá vou. De olhos abertos, que não me vou embora sem saber como. O meu peito incha e depois desincha de medo, quando a prancha ataca a água com a fúria de uma lancha de alta potência, só para perder combustível ao fim do primeiro segundo.
Faço o sinal de vitória para o meu filho que observa lá de cima, verde de inveja e a achar que me vai ver a subir outra vez as escadas, de prancha na mão, para repetir a façanha.
E agora? Como é que daqui, encharcadinha e a vomitar adrenalina, chego às redes sociais, perguntam vocês, e bem. Ora, em primeiro lugar, chego lá pelo tal bairro ancestral, conhecido como cérebro primitivo, onde os instintos já ocupam casa antes de sermos gente. As redes sociais adoram passear-se por lá. Gostam da vizinhança, dizem olá, aparecem para tomar café. Estão tão à vontade como se o bairro tivesse sido desenhado por elas e para elas.
Depois, porque não há meias medidas. Para sair de um entalanço, é preciso atirar-se de cabeça.
Minimalismo tecnológico
A minha saturação com a inanidade das redes sociais deu-se há já uns anos, quando tinha conta apenas no Facebook. Não a desactivei então porque não tive tempo de aprender a fazê-lo e a plataforma não facilita essas coisas. Mas depois lancei um segundo livro e, sendo autora ainda desconhecida num país pouco dado ao apoio a novas vozes, quis ver se através da exposição conseguia fazer a minha escrita chegar até mais leitores. Descobri então o Instagram e, em vez de sair do Facebook como andava a prometer-me fazer assim que tivesse tempo de tirar o mestrado em Desactivação de Redes, acabei por me meter em mais uma. Mas gostei do Instagram. Foi paixoneta até, confesso. Deixei-me levar de fascínio pela comunidade dos livros e não vi logo nele a inanidade do Facebook, porque tinha mais controlo sobre o que escolhia ver. Menos fotografias de gatos e bolos e olha para mim aqui e ali, mas mais substância. Livros, partilha de ideias, de inquietações, divulgação de iniciativas culturais. Conheci dinamizadores de leitura, conheci outros autores e, caramba, não participaria no Clube das Mulheres Escritoras se não fosse o Instagram.
Visto assim ao longe, o escorrega amarelo só tinha coisas boas.
Mas em breve se foi cimentando uma realidade que não é só defeito meu. Que Johann Hari menciona no livro “Sem Foco”. As redes sociais, que se passeiam com à vontade no bairro do cérebro primitivo (ele não faz esta comparação, sou eu outra vez a juntar retalhos de forma bizarra), não foram criadas para alimentar a profundidade do pensamento. Pelo contrário, são pranchas de lançamento de dopamina, activadas pelo constante deslizar do polegar. E está comprovado que não retemos o que lemos nelas da mesma forma que retemos o que lemos noutros meios.
Cedo ganhei consciência disso, porque me apercebi do meu exemplo: também eu não lia no Instagram. Perante a impaciência do polegar, a promessa de novo conteúdo e descarga de dopamina, os olhos eram obrigados a correr pelo texto, e o pensamento não tinha tempo para mais do que uma breve lambidela. Comecei a encurtar textos, a escrever pouco, tudo para ser lido em poucos segundos. E escolhi, temporariamente, não pensar muito nas consequências, porque ainda tinha muito que me prendia a ele, naquele comportamento de fim de relação, quando já se sabe que não há futuro, mas o presente ainda entretém e o hábito é um problema.
Depois veio a matança do 7 de Outubro de 2023 e com ela a oportunidade de implementação de um genocídio. E veio a sua detalhada implementação. E enquanto os meios de comunicação que eu lia e assinava faziam tudo por tudo para ocultar e manipular o que se estava a passar, os jornalistas em Gaza mostravam a realidade crua nas redes sociais, em desespero, convencidos que quando se mostra e se sabe, o horror não é permitido, tal como o povo unido nunca será vencido…
Continuei no Instagram por causa de Gaza. Já não pelos livros. Já sem paciência para quem só deles fala, atrás dos gatos e dos bolos e do olha para mim aqui e ali, mas agora com um livro na mão.
Tenho muito, de facto, a agradecer ao Instagram. Apesar de todos os esforços que fez e faz — e com certeza há-de fazer melhor no futuro —, para censurar o que fuja da narrativa defendida pelos senhores do poder, foi nas frechas do que não conseguiu calar com eficácia que aprendi a ler melhor, e a ver melhor. Sei que jornalismo seguir e apoiar. Foi através dele e que cheguei aos blogues de escritores e jornalistas que leio agora com atenção e apoio. Que valorizo, como nunca fiz devidamente no passado, o jornalismo independente e o papel fundamental que tem nas nossas decrépitas democracias.
Talvez pudesse ter ficado por aqui, sentada no topo do escorrega, com o Instagram pouco activo, mas sem sair dele. Mas eis que outro dia ouvi, numa entrevista antiga, a Alexandra Lucas Coelho dizer que quando precisa de escrever, sai das redes. De facto, no que eu inicialmente tinha interpretado como censura, já a tinha visto desaparecer várias vezes do Instagram. Fiquei a matutar nisto. A Alexandra, nesta metáfora absurda que o meu cérebro insiste em me apresentar, é o meu filho a dizer-me “vai, mãe!”.
Mas o escorrega continua a ser um susto, de modo que agarro-me ao telemóvel e digo-me, convicta, eu consigo controlar isto. Coloco horários. Só depois das cinco da tarde. Só quinze minutos máximo por dia. Só de vez em quando, se publicar alguma coisa. Grande parte das vezes, a coisa vai funcionando. O pior é que, no cansaço ou na distracção, quando o cérebro primitivo rouba o controlo ao córtex frontal, dou por mim com o telemóvel fora do bolso, ou da carteira, na palma da minha mão, o polegar sonâmbulo a percorrê-lo. Momentos de indagação, de criatividade, de pausa e pensamento, tornam-se com uma facilidade avassaladora, momentos de consumo inútil.
A decisão teve lugar há já umas semanas. Dormi mal e acordei muito cedo, ainda noite lá fora. Nas ruas do cérebro mais evoluído, tudo apagado e a dormir, mas nos bairros mais ancestrais do cérebro as ruas estão sempre a bombar, sempre tudo acordado, uma festa a qualquer hora do dia. Pensei: dou-me uns minutos e depois antecipo as minhas rotinas, e até enfio uma corrida antes de trabalhar, coisa que não estava programada para hoje. Mas só porque ainda é de noite, e já estou acordada, e são só uns minutos, vou ver o Instagram…. Quando pousei o telemóvel, tinha passado uma hora e meia. Já não antecipei rotinas, já nem sequer as comecei a tempo e horas, e não consegui ir correr antes do café. Se não percebi que estava a demorar demasiado tempo? Claro que percebi. Mas tudo o que me propus a fazer antes de me sentar a trabalhar era descartável. Na verdade, correr é facultativo. Começar mais cedo também é opcional. Assim sendo, o polegar continuou a correr pelo ecrã.
Tenho os dias ocupados ao milímetro. Não me chegam as horas para tudo o que quero fazer. E nesta manhã de cansaço, perdi uma hora e meia nas redes.
Ouvi outra vez a Alexandra atrás de mim.
“Vai, salta!”
E com a determinação de fazer frente aos instintos pesquisei como sair do Instagram e acabei com a minha conta. Não de forma permanente… neste caso houve a hipótese de experimentar um escorrega mais pequenino, antes de ir ao mais alto. Desactivei-a. Posso voltar, mas não vejo razão para o fazer. Há uma estranha sensação de liberdade em não ter sequer a aplicação visível no meu telemóvel. O dia tem mais horas, livre de uma preocupação que me sufocava: a produção de conteúdo descartável. E o activismo, esse faço-o de forma social e em comunidade. Ou faço-o com a minha escrita, mas de forma mais pensada, para ser consumida com outro prazer, num lugar um pouco menos efémero: aqui.
Não digo que não volte ao Instagram quando tiver outro livro para divulgar. Como não prometo que se voltar ao parque de aventuras com o meu filho livre de infecções auditivas, não o acompanhe ao escorrega. Já sei o que é estar lá em cima, e como não é assim tão difícil escorregar manhã abaixo até cair na água fresquinha.
Partilhas
Curiosamente, depois de escrever este texto, ouvi este episódio de um podcast que acompanho e que me fez sentir menos maluquinha na minha decisão. Aconselho a audição
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