Tempos interessantes
As palavras que trago ao peito, cinzeladas num pendente de prata. A resposta que dou à pergunta que não me fazes. O desejo de que estejas à altura do tempo que te foi dado viver.
Explico-te o que é isto, como o fiz em prata, para durar, se isto não é o meu país. Isto que trago ao peito todos os dias, porque no peito afinal cabe mais do que um país, e para o qual olhas com um silêncio que não sei bem ler.
Incompreensão? Ignorância?
Entendo que possa ser isso, porque quando penso em mim percebo que passei anos a tentar entender o mundo e só agora encontrei as peças que faltavam. Apesar de ter gasto mesada e sujado dedos de tinta, ano após ano, a ler jornais desde os catorze anos; apesar de ter no currículo um curso, uma pós-graduação e um mestrado em Relações Internacionais e Estudos da Paz; apesar de ter transpirado o calor húmido da selva Colombiana e observado in loco como a mentira é matéria-prima na tecelagem das narrativas; apesar de ter gretado os lábios no Verão seco de um Afeganistão esventrado e observado a criatividade com que se lucra com a violência global; apesar de ter tido na pele o sal das praias destruídas do Sri Lanka e descoberto como as consciências descansam bem em almofadas feitas de ilusão. Apesar disso tudo, faltavam-me as peças essenciais para entender o mundo. Como posso pedir o mesmo de ti, que não o fizeste, e talvez nunca tenhas tido a mesma curiosidade? Pode ser que eu seja particularmente ingénua, ou mesmo estúpida, e tu o faças sem recurso a grande investigação, mas a narrativa do presente e do passado, ambas estão construídas para que seja sempre difícil encontrá-la. Como aquela cena do Italian Job, replicada todos os dias: um mini é verdadeiro, todos os outros só lá estão para confundir. São iguais, aparentemente, mas não são eles. Ou como os palhaços num dos episódios da Casa de Papel. Só um, era o Professor. Como saber qual?
Não é fácil, por isso até entendo que possa ser isso.
Mas só em parte. Porque mesmo ignorante, sujeita a tanta informação, desinformação, opinião, verborreia destinada a confundir-te, para que, confusa, não ajas, ou ajas em prol do sistema que lucra contigo cega, surda e muda, mesmo assim… o que viste não é suficiente para que entendas? Para que saibas o que é isto, ou para que me perguntes, para que queiras disto falar?
Entendo-te pois, mas só em parte. Uma pequena parte. Porque em grande parte, o que tenho é medo de ti e do que significas para este mundo. Para outros seres humanos. Para este planeta. Porque está tudo ligado, não é possível escolher. Ser feminista de classe média mantendo silêncio sobre as diferentes lutas de mulheres de outra raça, fé, classe, cultura; ser ambientalistas e falar de reciclagem sem querer saber das bombas que se despejam longe; ser humanista e virar costas a um genocídio. A chacina de crianças devia bastar, para entenderes o que é isto.
Tenho medo de ti. Do que leio no teu silêncio quando vês isto. Da forma acomodada como te entregas ao privilégio de poder ignorar o mundo no teu cantinho, como se o teu mundo fizesse parte de um outro planeta, independente deste. Como se as pessoas com quem te cruzas na rua fossem diferentes daquelas com quem não te cruzas. Umas de verdade, com corações que palpitam, outras meras abstracções, números, com certeza sem órgãos, aspirações, sonhos. Dois tipos de gente. Dois planetas. Como quando se envia o lixo da Europa para a Ásia. Um oceano de distância. Como quando nós largávamos a miséria e atravessávamos fronteiras a pé. Mas éramos nós.
Tu, pelo contrário, que eu não conheço, dás-me esperança. Tu que olhas sem medo e falas. Tu, que levas o mesmo ao peito.
Tu, que olhaste outro dia e sorriste.
Tu, que apontaste, sussurraste obrigada e depois choraste.
Explico-te o que é isto para que o ouças sem me perguntares. Poupo-te os passos. E quebro-te o silêncio.
Isto é onde sempre estive, ontem, hoje e amanhã. Sou coerente, só não tinha era percebido que tudo se mostrava tão bem num simples objecto. É um mapa com palavras, se te aproximares hás-de conseguir ouvir, quando os meus dedos o tocam, o grito cinzelado na prata. From the river to the sea.
Mas isto não é sobre a Palestina.
É sobre colocar a humanidade acima de matéria e ódio.
É sobre não ser a fingir, dizer que assim o faço.
De que valem tantas lágrimas e apertos sobre os horrores e Auschwitz, se depois dizemos Nada se compara! como se a História fosse um livro encadernado, feito para decoração, arrumado na última prateleira. As suas páginas fechadas, com toda a matéria de aprendizagem, de alerta constante, silenciada. Para que seja possível a cegueira de um Nunca Mais!, quando o mais acontece e o nunca é agora. Antes uns, agora outros, amanhã outros ainda, quem sabe quais. Talvez nós? E de quantos não falamos, no passado? A verdade é um lugar inóspito.

Isto, é sobre estar ao lado do oprimido perante o agressor. Sempre. Não só quando é fácil, e me convém, e não perturba demasiado os alicerces podres das nossas sociedades.
E finalmente, isto é para que não te falte resposta, à pergunta que não me fazes.
Partilhas
Tenho muitas. Nos próximos dias vou voltar aqui com algumas novidades. Mas por enquanto, deixo-vos com um artigo, um vídeo e um cartoon, que se relacionam com… isto.
O artigo: Cidade Fantasma
Jabaliya. Norte de Gaza, berço do jornalista. Ele regressa à “casa” que não existe. E nesse regresso, depois de tentar localizar-se na destruição e identificar a Universidade no resto de um livro e de umas cadeiras partidas; de se sentar nos escombros onde as pessoas montam tendas na base das antigas casas, perto do esqueleto de edifícios que ameaçam desabar; de perceber que Jabaliya é uma cidade fantasma, alma penada de uma vida que foi, assustadora, a pensar que ainda vive; depois disto, o jornalista procura com quem falar. São crianças, três, de idades diferentes. Como foi, sobreviver a tudo, e como é, viver numa cidade fantasma.
“I know they have stolen everything from me: my home, my school, my family members, and my childhood. Nevertheless, I hope things will be better.” Rateb al-Helou, 12 anos
Parece ser que há planos para reabilitar Gaza. Condomínios à beira-mar e campos de golfe. Talvez Rateb possa ter juventude, se não teve infância. Ah… não, esperem. Parece ser que os planos não o incluem. Os condomínios são para outros. Como os campos de golfe. Para quem demoliu. Para agora construir.
Gaza já estava à venda quando Joe Biden estava na Casa Branca. A comer gelados.
Para Rateb, o futuro quer-se mais do mesmo.
O vídeo: Anatomia de um discurso
Há várias formas de falar, explicar, abanar a consciência, alertar para a necessidade de entender a actualidade para lá das nuvens de fumo. A minha é uma, as palavras enfiadas na ponta de uma lâmina que corte e rasgue e abra caminho a sangrar. Há outras, mais objectivas, que começam onde as minhas desabam. Deixo-vos com um eloquente pequeno vídeo que pega no discurso de Trump (uma coisa lhe temos de agradecer: torna tudo mais óbvio) para esmiuçar onde estamos neste momento da História, e o valor que tem… isto.
O cartoon: Tempos interessantes
E termino com um cartoon do mesmo autor da ilustração “Never Again”, NEMØ. Vi-o partilhado no início do ano, com a legenda do arrepiante provérbio que parece um inocente desejo, mas é afinal uma maldição. May you live interesting times.
Que vivas tempos interessantes… e estejas à altura deles. Um bom 2025.
“Always look for the truth from the ground up, rarely from the top down. Journalists are never real journalists if they are the agents of power, no matter how they disguise that role. Real journalists are agents of people.”
John Pilger, (1939 - 2023)
belo manifesto para chamar à atenção dos passivos, dos quietos, dos calados que confortavelmente dirão que auschwitz foi uma tragédia. de resto, uma ode ao desconforto que não nos torna feliz (felicidade essa obsessão contemporânea) mas torna-nos completos.
Há que acender o olhar mais difícil. E manter as palavras certas, mesmo que o eco destas seja o silêncio que não sabemos se concorda ou não ou simplesmente dorme. Até as pedras são e pensam.