Um mês para escrever um romance?
Um desafio e uma organização inédita. Mãos à obra e já veremos onde acabamos juntos.
Desafios, venham eles
Decidi participar há apenas dois dias na NanoWriMo, uma iniciativa nascida em 1999 — tornada ONG, em 2006 — que pretende incentivar a escrita através de um desafio: 30 dias para escrever 50,000 palavras ou um romance. Acontece todos os anos em Novembro, e todas e cada uma das edições até agora me passaram ao lado. Mais, se me perguntassem, há alguns meses, se me via a participar numa estopada destas, diria que não sem hesitação. Mas aha! nunca dizer nunca, nem daquilo que estamos profundamente convictos a dado ponto do nosso efémero percurso.
Passei, pois, os últimos dias de Outubro a organizar o material de um potencial romance: a descrever personagens e a estruturar o outline de uma forma inédita para mim e à qual já lá vou. Um entusiasmo que contrastou de forma espantosa com a insipidez dos últimos meses, passados, na ressaca da elaboração de um livro de não-ficção, a escrevinhar pedaços soltos de dois romances sem qualquer estrutura. Tapei o desafecto com a convicção mole de que talvez bastasse deixar-me levar por personagens que nem sequer tinha clarificado bem ao começar. Acabei completamente perdida numa floresta de palavras vãs, às quais facilmente se sobrepôs a sensação de vazio quando o mundo começou a entrar cabeça e ânimo adentro. É difícil, viver com o mundo. Medir a abstracção necessária para não ignorar, mas também não paralisar na empatia. Enfim, há semanas larguei a floresta, pousei as ferramentas e virei costas àqueles personagens.
Aparentemente, desisti. Mas só fingi. Reparem, passei as últimas semanas enfiada na investigação do possível contexto de uma das histórias, a saber bem que o fazia, mas a dizê-lo bem baixinho, para que nem eu me ouvisse. Afastei-me da leitura de ficção (estou atrasada em todos os três livros que me compete ler para os clubes de leitura) e virei-me para as memórias do tempo que sabia querer explorar. Infelizmente, confesso, nos dias que tem havido, também me senti menos culpada a ler pedaços da realidade do que a fugir dela, mesmo que inconscientemente soubesse que o intuito é dedicar-me, com ela, à ficção. Aos poucos, a leitura foi-me oferecendo contornos mais claros da história que tinha colocado em pausa e acabou por chamá-la à minha mesa de trabalho.
Acontece que este chamamento se manifestou às portas de Novembro e, no Instagram alguém me lembrou que este é o mês da NaNoWriMo. Sei que funciono com objectivos e disciplina, por muito aleatórios e fictícios que sejam, e esta foi a desculpa perfeita, porque me faz comichão, pela primeira vez em dois anos, não ter um romance em mãos. Um mês para avançar até o primeiro rascunho de um livro. Será possível? Não sei, mas gosto de desafios e só a existência deles, mesmo que seja eu própria a impô-los, já me serve de desculpa e autorização para me fechar do mundo.
A decisão, tomada já na soleira do mês, deu-me só dois dias para preparar este dia, em que me sento no café, computador à minha frente, e me coloco em posição de partida. Anteontem peguei nos personagens que tinha e defini-os melhor. Tive uma ideia, percebi que talvez ele fosse ela, e ela fosse ele, e só nessa mudança tudo fez mais sentido, as peças encaixaram melhor, a história aprumou-se. Talvez, afinal, precisasse de roupas novas para sair à rua.
Depois, brinquei com o outline de uma forma que nunca me tinha ocorrido, na minha vasta experiência de dois romances publicados: peguei no que tinha acabado de escrever há dias, mudei o ele e a ela, coloquei tudo em caixinhas, imprimi e cortei. Porque a história tem princípio, meio e fim, mas tenho a certeza de que não pode ser contada da forma que ali está. Posso, como fiz antes, escrever ao sabor do que sei ser a história, do que sei querer contar como tema, do que sei serem os personagens e o que devem despertar, e depois reorganizar tudo, uma e outra vez… Mas tenho um mês, certo? E tenho também uma experiência nova no meu repertório, a de escrever um livro de não-ficção num tempo assaz curto, coisa que fiz com sucesso este ano por recurso a ferramentas organizativas que de algum modo desdenhei — até agora —para a aventura mais visceral da ficção. Decidi tentar, a saber que os três personagens a quem me proponho dar corpo têm o seu papel na história, mas o tempo linear não lhes serve para o desempenharem devidamente.
Depois de cortadas as caixinhas, sobraram-me vinte e seis papeis livres. Cada um, um potencial capítulo, que espalhei pela cama. Brinquei com eles. Pensei que fosse tarefa difícil, colocá-los de forma a que encaixassem de forma suave, mas afinal não. Acrescentei aqui, dividi ali, mas acabei surpreendida. A estrutura que ficou, não me teria ocorrido de outra forma. E claro que poderá ser alterada à medida que a escrita for abrindo caminhos e fechando outros. Mas isso acontecerá, talvez, depois deste mês. Depois do primeiro rascunho, senão terminado, então a caminho de o ser.
Desejem-me sorte e concentração, desejem-me que o mundo não me paralise e os meus filhos não adoeçam, desejem-me que a vida não se meta pelas frestas das horas, e que nos voltemos a ver só em Dezembro, com o primeiro rascunho de um manuscrito, imperfeito como eles sempre são, enfiado neste mesmo computador, onde hoje me faço esta promessa.
Partilhas
A que mais vale a pena fazer, pela mão da Marta Nunes, ilustradora portuguesa cujo trabalho muito admiro por toda a sensibilidade que capta em imagens simples.
“Fomos muitas as mulheres que, sem estarmos fisicamente envolvidas nas guerras coloniais, as combatemos. Seguimos namorados e maridos em exílios diversos, partilhámos alegrias e tristezas. Outras, em Portugal, foram presas e pagaram, tal como os homens, as suas posições políticas e militantes.
Quando se escreve sobre exílios, com algumas excepções, escreve-se no masculino e os nossos percursos são (foram) muito mais silenciosos.”
Ana Benavente, in Pátria Utópica, o Grupo de Genebra Revisitado