Visita Guiada
Acompanhem-me numa visita guiada a uma conferência, os painéis como se fossem salas, as minhas palavras, as introduções à entrada de cada uma.
Vou levar-vos, nesta partilha, a uma visita guiada pela Conferência “A Palavra Escrita, a Mulher e a Paz” que teve lugar no dia 8 de Março, organizada pelo Clube das Mulheres Escritoras, ao qual pertenço. Vou dar-vos as mãos pelos painéis, como se fossem salas e deixar-vos os vídeos para que os vejam e explorem a vosso tempo. Venham daí.
Antecâmara
Antes de entrarmos conferência adentro, e já que tenho a vossa atenção, agarro-vos pela curiosidade na antecâmara. Há um contexto importante, uma explicação do tempo e espaço da Conferência que gostava de referir, porque todas as iniciativas se entendem melhor quando contextualizadas. E já que todas as salas nesta conferência tratam da importância de abrir olhos que possam estar fechados, também esta introdução serve o propósito. Não vos vou falar de paz, porque essa é a matéria que se discute, o miolo, e as razões pelas quais escolhemos o tema julgo não necessitarem de mais explicação. Talvez seja contudo necessário justificar o facto de serem praticamente apenas mulheres a falar, embora a conferência se passe no Dia Internacional da Mulher. Mas vai daí, que importância tem ainda o dia, dirão alguns de vocês… não, não dirão. Duvido que haja quem esteja aqui, com esta curiosidade, que o pense, quanto mais o diga. Portanto, também não vou perder tempo com isso. Mas agarro-vos a mão e peço que fiquem uns segundos à entrada para vos falar do espaço e do tempo cultural em que a Conferência acontece. No mundo inteiro, vivemos tempos de desajustes. E é importante que reparemos neles.
Vejam, achámos, no Clube das Mulheres Escritoras, que a Paz era um tema pertinente para a actualidade. Achámos, ao concluir os convites, que tínhamos encontrado as pessoas certas para explorar a relação entre paz, palavra escrita, e mulher, e que cada painel garantia momentos de reflexão e aprendizagem. Achámos que tínhamos ido de encontro a inquietações existentes na comunidade e vimos esse achar confirmado com o entusiasmo com que a sala da Fundação, com número limitado de pessoas, esgotou inscrições em vinte e quatro horas. Mas, aparentemente, estávamos enganadas. Assim nos disse o grande órgão de comunicação social do nosso país, porteiro das iniciativas culturais que são ou não divulgadas: a nossa carecia, afinal, de interesse cultural. Estaremos a observar a realidade com os óculos errados?
Dou um tiro no pé ao escrever isto, porque vejo que alguns de vocês se inquietam já, pensam que não querem enganar-se nos óculos e acabar a navegar contra a corrente (que coisa trabalhosa!). Não me interpretem mal. O que me angustia, e a razão por que vos retenho momentaneamente nesta antecâmara, não é a falta de divulgação em si, mas o que ela representa. Não é ressentimento circunstancial, mas uma questão mais abrangente que tem tudo a ver com as salas desta conferência. Vivemos tempos distópicos e não apenas graças às disrupções da extrema-direita populista. Há uma teimosa defesa das falácias e imperfeições da uma ordem estabelecida que nos falha, em vários graus, e com consequências de diferente amplitude. Grandiosas no mundo político que estremece, significativas nas suas pontas. Esta é uma ponta. Há um apertado circuito intelectual do nosso país, mantido estreito, como se a estreiteza beneficiasse alguém mais do que os poucos que lá ficam dentro, como se beneficiasse, em vez de limitar, a nossa literatura, a nossa vivência, a nossa sociedade, a nossa democracia. As redes sociais não podem continuar a perceber e divulgar melhor o que se passa à nossa volta, sob pena de dependermos dos meios errados, desprovidos de códigos deontológicos e movidos por interesses muito pouco éticos.
É imperioso que percebamos isto. Sei que querem avançar e peço desculpa de vos prender aqui, mas insisto e justifico-me nesta explicação, dizendo que o se passou à volta da conferência se relaciona também com o seu conteúdo, porque nele vamos falar do apagamento de escritoras portuguesas e da manipulação da visibilidade e da invisibilidade, de quem decide o que é visível e o que permanece invisível. E dos seus perigos. Não são ficções. São realidades palpáveis.
Está dito. Sigamos então, e entremos com espírito aberto e atento na primeira sala.
A sala das mulheres e da Paz
Fui eu que moderei este painel. Trouxemos a uma mesma mesa duas amigas, a Rosa Azevedo e a Lúcia Vicente, sensivelmente da mesma geração e ambas ligadas às letras. A Rosa por ser livreira, a Lúcia escritora. E juntámos, para baralhar as cartas, uma jovem, a Teresa Núncio de vinte e três anos, estudante de medicina e activista climática.
Nesta sala, explorámos o papel da mulher enquanto defensora da paz no passado dos movimentos feministas. Fomos ao século vinte e relembrámos a visão da sociedade que tinham as brilhantes escritoras que o nosso país arrumou na gaveta. Percebemos que as mulheres são maioria nos movimentos activistas e desencantámos explicações para isso. Relembrámos que não se intervém na sociedade sem consequências, e se a invisibilidade de antes dava liberdade, a crescente visibilidade de hoje pode acabar com arruaceiros a impedir o lançamento de livros. Perguntámos à Lúcia Vicente como é ser recebida com violência quando se apregoa a tolerância, e à Teresa se, para conseguirmos sobreviver neste planeta, é necessário perturbar a paz mole do dia-a-dia. Pano para mangas, e muitas pontas soltas para juntar. Disfrutem e anotem os livros recomendados.
A sala da dança
Tantos são os momentos onde o pensamento é convidado a parar nesta sala, tantos, que é indecente, talvez, dizer que o momento auge é o do desafio da Pilar del Rio. Mas quem consegue resistir à ideia de substituir as manifestações, os panfletos, as vigílias, até as conferências, por um imenso baile pela paz. Ela fala e eu imagino José Saramago a ouvi-la, a rir-se, imagino a sua cabeça a fervilhar com a concretização de um absurdo que afinal não é tão absurdo, a sentar-se e meter mãos-à-obra no papel. E se... houvesse um imenso e maravilho baile mundial pela paz?
Pilar distrai-nos, sem nos distrair, do tema em questão: a escrita como forma de resistência e activismo. A Cláudia Lucas Chéu dá um exemplo elucidativo do impacto da palavra escrita e quase o canta em palco. A Joana Bértholo lembra-nos que a palavra tem tanto poder porque cria e destrói narrativas, e as narrativas são o material a partir do qual se constrói o mundo. Às vezes, pergunto-me porque escrevo. A Joana lembrou-me. Vejam e, no fim, anotem mais livros.
A sala do invisível
Acompanhem-me agora à sala onde falamos dos porteiros. Aqueles que decidem, à entrada do edifício do presente, quem entra e quem não entra. Quem tem voz e quem não a tem. Quem são eles, que impacto têm e o que se faz para lhes dar a volta?
Duas jornalistas com visões muito diferentes, e que de forma também muito diferente os contornam e forçam a entrada dos pequeninos no edifício dos grandes. Catarina Carvalho, da Mensagem, a dar vida aos bairros de Lisboa e aos seus habitantes. Marta Vidal, a dar voz e nome às vítimas que também os nossos governantes consideram sub-humanas, talvez merecedoras de castigo, mas nunca de atenção isenta, porque os Direitos Humanos e o Direito Internacional não são para ser levados à letra.
Às jornalistas junta-se uma escritora, Gisela Casimiro, nascida e crescida, como ela própria diz, na invisibilidade. Os temas são delicados e emotivos. Invisibilidade, impotência, opressão, silenciamento. E perante eles, o peso da palavra. Que tanto pode ela? Marta Vidal já pensou que podia mais. Catarina Carvalho defende que ela tem de ser mais cuidada, para entrar nos campos adversários e ser ouvida além dos nossos muros. O jornalismo, diz ela, “é um verbo transitivo”. Gisela Casimiro é a voz que não me canso de ouvir. São talvez vozes assim, que ultrapassam todos os muros. Ainda não têm livros suficientes? Há mais recomendações.
A sala do botão vermelho
Nesta sala, voltamos a falar de porteiros, e a palavra escrita é outra vez a do jornalismo. Um dia, achámos que era através da palavra escrita em jornais que conhecíamos o mundo e sustentávamos a verdade das nossas democracias. Eu pensei-o, candidamente, durante anos a fio. Talvez nunca tenha sido bem assim, mas há muito tempo que não era tão mau.
Esta é a sala em que perguntamos ao Bruno Amaral de Carvalho e à Sofia Branco se se escreve para a Guerra, ou se escreve para a Paz, e eles nos respondem que se escreve para as visualizações; que se escreve para mostrar uma narrativa; que se escreve para que homens brancos e velhos falem de um mundo de homens brancos e velhos. Nos respondem que, afinal, o jornalismo cada vez mais afunila em vez de expandir. E que se a informação pluralista é liberdade, e a liberdade é o garante da democracia, podemos começar a fazer as contas ao contrário, porque caminhamos para trás. O Bruno foi o único jornalista português a acompanhar a Guerra da Ucrânia no Donbass, e a sentir na pele as consequências de mostrar os vários ângulos de uma história, porque o jornalismo por vezes não serve a compreensão, mas a manipulação. A Sofia apresenta os números do Centre for Media Freedom and Pluralism, e descobrimos que, final, somos quase todos mais invisíveis do que supúnhamos. Não há recomendações de livros no final, mas eu recomendo “A Guerra a Leste”, do Bruno, e “As Mulheres e a Guerra Colonial” da Sofia. E recomendo que ouçam este painel, porque nos cabe a nós lutar também pelo jornalismo, como lutamos pela democracia, como lutámos e havemos de lutar pela liberdade, para que amanhã não seja 1933, nem 1926, nem coisa pior.
A sala do eco
Gostava que esta visita guiada acabasse como um poema. Tal como a Alice Neto o diz: A continuação do poema é o eco que fica. Gostava que quando a abandonassem, ficasse o eco das palavras. Qual delas, não sei, porque há tantas que podem ficar, e as que ficam comigo podem não ser as que ficam contigo.
Nesta sala, o eco é ainda mais importante, porque falamos do futuro, falamos da educação, falamos das novas gerações e das palavras que lhes damos. Se falhámos como geração, e podemos com toda a legitimidade indagar-nos se assim foi, conseguiremos fazer melhor da geração que nos segue, ou vamos convidar a que façam ainda pior, a que persistam na cachina das Humanidades, da solidariedade, da empatia. Vamos continuar a privilegiar a “literacia financeira”, em vez da “literacia empática”, a ensinar sem espirito crítico, a riscar a azul todos os porquê? Na sala, estão a Alice Neto, a Joana Simões Piedade e a Catarina Sobral, e eu, quando saí, trouxe um poema e uma cesta. Partilho aqui, mas assistam à discussão, para saberem enquadrá-los:
A Ficção como uma Cesta, de Ursula K. Le Guin (pdf disponível online)
Fim e começo, um poema de Wisława Szymborska (disponível online)
A sala da palavra e da música
Estamos a chegar ao fim da visita. Nesta última sala, a palavra não é usada para explicar a sua importância, mas para a demonstrar. Entrem com cuidado e sentem-se, ombros relaxados e peito aberto. Primeiro, vai ser lido um texto. As palavras são de Sara Rodi. A leitura, de Mafalda Santos e Gabriela Relvas. “Dobro as meias, escolho a paz”.
O texto aqui lido faz parte da revista anual do Clube das mulheres, cujo segundo número foi lançado no final da conferência. É um de entre vinte e dois textos originais de vinte e duas autoras portuguesas contemporâneas. Desobedeçam aos porteiros da invisibilidade, comprem e leiam, descubram a vida para lá dos holofotes, contribuam para que sejamos menos provincianos e menos encarneirados. Pode parecer que nada disto tem a ver com a paz, mas se estiveram atentos às salas e se lembram da antecâmara, está tudo relacionado.
Por fim, nesta sala ainda, juntamos a música à palavra. Terminamos a brincar com a “chave-de-ouro” e a passar do humor às lágrimas. Excelente Mara, que tanto nos esmurrou o peito, como nos pôs a cantar. De alguma forma, reflexo perfeito da conferência: tanta coisa para reflectir, tanta responsabilidade na escrita e na leitura, tantas portas que nos fecham e que nem sabíamos que devíamos abrir, um mundo a sangrar e a desfalecer, todo esse peso… e, no entanto, o coração cheio no fim. Como se tivéssemos contribuído alguma coisa para que ele possa ser melhor. Será?