Zum zuuum...plof!
Ai! Por onde me meto! Das minhas manias de escrita, ainda vai, que são minhas, agora da inveja portuguesa... Valham-me! E as moscas, coitadas, que culpa têm elas?
Do processo de escrita
Este mês, regressei à ficção, o que quer dizer que regressei às noites que não são minhas. As luzes apagam-se e é vê-las a libertarem-se, as personagens em que não mando. Às vezes saem de mim com vontade desse espaço, de esticarem as pernas e corpo, dormentes de viverem encolhidas no espaço exíguo onde que as rotinas as enfiam. Saltam então, com vontade, para o palco do quarto e mostram-me a sua história.
Outras vezes, nem tanto.
Noites há em que me viram as costas e se recusam a responder às minhas perguntas. Esquecem-se de como se devem comportar, impacientam-se. São o meu filho mais velho, a rebolar no sofá, ou a esfregar-se no chão, quando lhe parece inabarcável o tamanho da pequena tarefa que tem a fazer.
Não adianta, digo-lhes. Como lhe digo a ele. O que há a fazer continua a ter de ser feito. Fecho as portas para que não voltem a entrar em mim e planto-me à frente delas, guardiã feroz, atenta e paciente. Espero. Em algum momento, depois de espernearem, acabam por ceder. Lembram-se que se me contarem histórias, elas embalam-me e eu adormeço. E não há quem guarde portas a dormir. E então falam, e eu ouço. Aprendo-as, conheço-as melhor. Tiro notas mentais, para que de manhã as possa desenhar em letras. Tento resistir ao sono, mas nunca consigo. Adormeço sempre, e elas passam por mim sem que dê já conta.
Do que me contaram, com sorte não esqueço tudo. Ou com sorte, se me esqueci, algo fica a boiar no inconsciente e basta deixar os dedos correrem sozinhos para que nem tudo se perca.

Da Inveja Portuguesa
Andava eu de mal com a Malásia e de bem com o meu país, quando a Mísia se pôs a desenterrar o Manoel de Oliveira, numa observação que me ficou a zumbir nas orelhas, tal mosca de setembro, teimosa e peganhenta. Ouvi-a dizer aos meus ouvidos, no excelente podcast A Beleza das Pequenas Coisas, que o realizador lhe chamou a atenção um dia, num evento em que foi aplaudida algures no planeta, mas longe de Portugal, para a existência, no nosso país, de uma espécie particular de inveja. Uma inveja tão tipicamente portuguesa como a calçada ou a guitarra. Devia também ter o nome do nosso país. Isto agora já sou eu a acrescentar, que nem ele nem ela disseram nada disto, mas quem conta um conto... O que ele disse sim, e ela repetiu, é que temos no nosso país uma inveja particular. Não é a espécie de inveja de ter mais do que o vizinho. Aquela do se ele tem isto, eu vou ter aquilo. Não. Essa espécie de inveja é, de resto, demasiado usada, coisa gasta, pouco original. Demasiado construtiva também, porque leva a que se lute por mais, sempre a lutar, agora ele tem isto eu vou ter aqueloutro... uma canseira!
A Inveja Portuguesa, e também aqui já sou eu a colocar-lhe nome em maiúsculas, é uma inveja muito mais pacata e ao mesmo tempo poderosa. Traduz-se num querer que o vizinho não tenha. Não importa o que eu tenha. Mas importa que o vizinho não o tenha. Acaba numa conjugação bonita: eu não tenho, ele não tem, nós não temos, vós não heis-de ter. E lá tropecei nos tempos verbais, mas não de forma ingénua, que sabia ao que ia.
Assim sendo, lá fora, onde o vizinho deixa de ser vizinho, e passa a ser um estrangeiro, podemos aplaudir. Isto, se houver aplausos, claro, que a iniciativa não há-de nunca ser nossa. E atenção que os aplausos não são descuidados. As mãos podem estar ocupadas, mas os olhares atentos, à espera da imperfeição, do deslize, do tropeção. Ele acontece sempre. Adoramos transformar bestiais em bestas, estamos tão preparadinhos que é um regalo observar a rapidez com que o fazemos.
Não fui eu, foi a Mísia. E o Manoel de Oliveira. Se estão a ouvir moscas a zumbir, a culpa foi deles.
Mas e agora, se estão, que fazer deste zumbido desagradável? Pois aqui já sou eu a propor: remédio santo será um mata-moscas escondido atrás das costas. Já nos basta a calçada onde escorregamos todos em dias de chuva, mas que pelo menos é linda, e a guitarra, da qual nada, mas mesmo nada há a dizer, a apropriar-se do nome portuguesa. À inveja, retiremos-lho.
Eu ando atenta desde aquela conversa, zumbido no ouvido e mata-moscas na carteira. E era isto que vos queria dizer: estou sempre a dar com elas! Moscas nojentas. Mas não me escapam e garanto-vos que enquanto as esmago, implacável, na redezinha de plástico, também tenho aproveitado para, gentil e humildemente, que a contribuição de uma pessoa é o que é, guiar o pensamento a quem lhes dá essas asas ruidosas.
Leituras

É oficial que já me meti em três clubes de leitura na minha vizinhança e não estou a dar conta do recado. Mas tem sido uma descoberta fascinante de escritores locais para quem vai toda a minha solidariedade. O que vale é que são lidos fora da Malásia porque dentro, tenho a sensação de que a maioria esmagadora da população deste país não conhece o nome de um único romancista. Viva a sociedade pós-literatura! É linda, só vos digo.
Se tiverem curiosidade, ficam três nomes. Tash Aw, Tan Twan Eng e Karina Robles Bahrin. O último, o mais leve, mas o de maior coragem: a autora vive na Malásia e fala do que implica ser uma mulher de raça malaia (e como tal, obrigatoriamente, sem poder de escolha, muçulmana). Os outros dois já se puseram a andar do país. Um vive em França, o outro na África do Sul. Tan Twan Eng explora a história e dá-lhe vida, e dele já falei na última Escrita e Outras Coisas, Tash Aw mergulha na actualidade e, com uma imensa sensibilidade e humanismo, mete-se nos bastidores de uma sociedade profundamente desigual, de corrupção e capitalismo desenfreados: bem-vindos ao sudeste asiático, que espero não seja a antecâmara do futuro. Five Star Billionaire. Se tiverem curiosidade, podem começar por aqui.
Até já.
O calendário já está no frigorífico desde maio. Julho é mês de regressar a Portugal. As cruzinhas estão todas no lugar devido, mas as malas ainda estão na arrecadação. Há-de ser tudo à última hora. Cheira-me que não vos volto a escrever até setembro. Mas quem sabe.
Até lá, vão matando moscas, que bem precisamos! Zum zuuum… plof!
“You must appreciate that time is always against you. It is never kind or encouraging. It gnaws away invisibly at all good things. Therefore, if you have any desire to accomplish anything, even the simplest task, do it swiftly and with great purpose, or time will drag it away from you.”
Tash Aw, Five Star Billionaire
Rita, a tua escrita é um convite à inveja. Depois queixa-te!
Escreves tão, tão bem, mulher...!! Que gosto ler-te!