Partir
O que ficará destes nove anos, do que me vou lembrar, quando um dia disser: a minha quinta década de vida, passei-a na Malásia.
Os últimos dias na Malásia são engolidos num rodopio de logísticas não-antecipadas e problemas de última hora. São intensos e lamento que se passem assim, sem pausas nem reflexões. As urgências sobrepõem-se à minha sede de contemplação e saio sedenta. Há pequenos intervalos, pausas engasgadas, mas uma cansativa dor lombar garante que também nelas se infiltra a urgência do imediato.
Assim, exausta, fecho à pressa o livro de quase uma década de vida. A minha quinta. Foi passada na Malásia, hei-de dizer um dia, a tentar lembrar-me exactamente de como foi. Como foi o Verão inesgotável e a permanente humidade na pele. Como foi viver na abundância de sabores, de plástico, de sorrisos rasgados, vozes suaves, de novidade, de multiplicidade, do ruído e pó das construções imparáveis. Como foi assistir à brutal luta da natureza para se manter viva no frenesim de destruição, vê-la nunca vencida, a romper de verde ou raízes o cimento e o alcatrão, à espera, sempre à espera, nunca derrotada. A ouvi-la quase todos os dias a explodir o céu, a parti-lo ao meio e a rugir alto, muito alto, a ser ainda mais aterradora e severa no topo dos edifícios de demasiados andares, a lembrar-nos da nossa fragilidade, das formiguinhas que somos apesar da nossa arrogância. Do seu imenso poder, apesar da sua imensa tolerância.
A casa de convalescença
Terminou a minha presença na casa de refugiados, onde sou fisioterapeuta há anos. As lágrimas rasgam-me e ainda me colo com fita adesiva quando olho para trás e os vejo, quando caminho para longe com o meu futuro a cair-me das mãos, envergonhada que o vejam. Sigo em frente, com o meu passaporte e o meu privilégio, entro noutro país onde me abrem braços e me recebem, me deixam viver e trabalhar. Caminho, com as minhas duas pernas intactas, o meu corpo jovem, porque se é, e não é, jovem aos cinquenta. Eles ficam para trás. Vinte e poucos anos, nem passaporte nem pernas com que andar. Sigo em frente e ainda agora os sinto atrás de mim, naquela última imagem, eternamente naquela casa, onde já fazem parte da sua estrutura e matéria. A eles se junta o médico, ali apenas há dois anos, ainda com a esperança que eles já perderam. Também ele é um refugiado que ninguém quer, mesmo que tenha pernas e saber técnico. Também ele há-de fazer parte daquela casa, ser um dos seus pilares e paredes móveis, ali eternamente. Como as casas e os lugares nas nossas memórias, onde guardamos gente que ali fica para sempre.
Sigo em frente, mas estão atrás de mim, os olhos nas minhas costas, húmidos, como a pele. Lembram-me que este mundo que habitamos e construimos não assenta em alicerces de justiça, ou misericórdia. Mas que é feito disto, para que aquilo exista, num vergonhoso desequilíbrio. Hafiz, Zokir, Nur, e tantos outros que vieram e foram, são vidas descartáveis, ocultas, esmagadas na construção de edifícios de cinquenta andares, onde trabalham sem direitos nem segurança. No cimo dos edifícios que os esmagaram existem penthouses onde se vive acima do mundo, da natureza e da humanidade. Mesmo se todos os dias os corpos se encolham, porque o céu se impõe num grito rouco, a falar, talvez, de tudo o que ficou por baixo de betão e aço, a lembrar que a natureza um dia cobrará isto tudo, porque tudo a ela pertence.
As lágrimas rasgam-me e a fita adesiva não adere porque a humidade infiltra de água a cola. Boicota a possibilidade de juntar tecidos e sarar, que é como quem diz, esquecer o que um dia rasgou o corpo. Esquecer o porquê e todas as várias ligações, esquecer responsabilidades e explicações. Nem esta casa de refugiados é só esta, nem eles são só eles, e assim por diante, até chegar a Gaza, que não é só Gaza. Na Malásia, como já confessei, dormi e acordei. Descobri, na forma irremediável desta tatuagem de tecidos rasgados, que a vontade de ignorância e de silêncio têm a mesma raíz. Beneficiamos em riqueza ou em paz, em abundância ou entretenimento, muito ou pouco, e é melhor não saber exactamente como. Não somos diferentes daqueles que dizemos não querer ser. Nos filmes e nos livros, não torcemos por nós, mas pelo oposto do que somos.
Tenho os olhos deles nas minhas costas, quanto caminho. Estão lá, quando me volto para trás. Não me deixam sarar, que seria o mesmo que esquecer.

Um carro
Estou sentada à espera de assinar os documentos que formalizam a venda do carro que nos levou a todos os lugares onde chegámos na Malásia. Às praias de Terengannu e à ilha de Sibu. A Pulau Pakor. Ao norte fundamentalista com as suas autoritárias bandeiras verdes. À arte mural de Penang (a fotografia inicial é de um mural também, mas de Kuala Lumpur, um de vários na restaurada Kwai Chai Hong Lane). Aos parques de campismo e às caminhadas na selva. Às plantações de chá de Cameron Highlands. Às cascatas escavadas na terra, distribuídas por toda a geografia. Aos montes de limestone de Ipoh, a desaparecerem aos poucos. A Malaca e à sua história, contada de outra forma daquela que lemos nos livros de escola, de resto pouco destinados a apresentar-nos a realidade descomprometida e mais ocupados com a iniciação do amor à pátria. Pois que de outra forma se podem sustentar as fronteiras, se não a contar histórias de faz-de-conta desde a terna infância, que as tornem desígnios ocultos da natureza, forjadas pela supremacia do espírito humano. Cada país com o seu faz-de-conta, para que o rio cortado a meio tenha lógica e faça sentido desde sempre, porque somos imediatamente diferentes ao acabar um traço e começar outro. Somos? Ou será que somos sempre iguais e diferentes, e diferentes e iguais, independentemente do traço do mapa: na Beira e no Algarve, no Minho e em Lisboa, na Guarda ou na Covilhã, na Afonso de Albuquerque ou na Escola da Sé, na turma A, ou na turma D.
Talvez um dia olhemos para trás, na emergência de problemas globais, e desmascaremos isto tudo, como ao crescer desmascarámos a falácia do bicho papão, que aparecia se não comêssemos a papa. Era só um faz-de-conta, afinal, para nos domesticar a infância. O que seria dos poderes deste mundo, dos bilionários que fecham Veneza, se todos tivéssemos verdadeira liberdade para pensar e coragem para saber.
Divago, mais uma vez. Falava do meu carro.
Na JPJ de Wangsa Manju, entrego as chaves e fecho o negócio. O meu carro, que já não é meu, está limpo e aparentemente vazio das nossas coisas. Dos sacos de supermercado na mala, da lata de água tónica que os miúdos voltaram a esquecer no banco de trás. Dos carregadores e do suporte do telemóvel que todos os dias me guia pelas estradas labirínticas de Kuala Lumpur. Aparentemente vazio, mas está tudo ainda lá dentro. Não consegui limpar nenhuma imagem antes de o vender. Os assentos dos miúdos que já não são necessários. A parafernália das malas nas férias, as pranchas, a tenda. Mesmo os móveis transportados nos primeiros dias, e nas mudanças de casa. Todos os amigos e amigas que viajaram connosco. E lembro-me do dia em que preparávamos a viagem a Hong Kong, onde o Roger tinha ido em trabalho, e o mais novo insistia que não era Hong Kong, mas Kong Kong, e o outro sonhava em passar a vida num hotel. Partilho, com autorização deles, o vídeo que tanto nos fez rir, onde estão estes pequenos seres que já só existem na memória. Tal como o carro que os leva da escola para casa.
Um carro, afinal, não é só um carro. Como uma casa não é só uma casa. São espaços onde a memória se instala e é desalojada quando deixam de ser nossos.
Partida
Levantamos voo quando a manhã desperta. Sentados no centro do avião, não vemos a cidade desaparecer. Não vemos uma última vez os insustentáveis campos de Palma Africana, tão luxuriantes como monstruosos, tão natureza como o seu oposto, propagados até onde a vista alcança. Fecho os olhos para me lembrar deles, só para agarrar os contrastes, lembrar-me de como foi, para dar mais dimensão ao que é. Pergunto-me o que ficará, de que me vou lembrar, quando disser a minha quinta década de vida, passei-a na Malásia.
Na auto-estrada até ao aeroporto, a saber que é a última vez que a percorro, vários momentos surgem à janela da memória. Não são os que esperava, e não sei bem porque ficaram tão bem guardados. Talvez não esteja bem consciente dos momentos que agarro. Acho que dou a mão a uns, mas afinal dou a outros. A viagem a Bali, feita quando a poluição do ar na Malásia foi tão grave que o sol deixou de se ver e se tornou uma mancha de luz fosca no céu cinzento. As escolas fecharam e nós vivíamos com máscaras, janelas trancadas e purificadores de ar. Lembro-me da fotografia. Procuro-a, para a deixar aqui.
Quando a partilhei com família e amigos em Portugal deixei toda a gente horrorizada com este absurdo de se viver com uma máscara no rosto. Alguns meses depois, entrávamos em 2020 e passámos a andar assim todos, no mundo inteiro, embora por razões diferentes. Mas então, quando o fizemos, o céu voltou a ser azul, e o sol uma estrela tão forte que não se olha para ela sem cegar.
Não sei o porquê desta memória me ocorrer, entre tantas que poderia ter escolhido. Saíamos então para regressar, não como agora. Saíamos também com pressa, com vontade de deixar este país e a sua destrutiva ganância (há outro tipo?). Será que sinto um pouco do mesmo, afinal? Um certo alívio, mesmo que me entristeçam todas estas últimas vezes, mesmo que leve comigo, desalojadas, as memórias de nove anos?
No livro que escrevo, faço uma das minhas personagens partir e chegar de vários destinos, e ouço-a pensar em como, na transição entre dois lugares, às vezes se chega mais do que se parte, e outras se parte, mais do que se chega. Quando escrevo isto que ela pensa, começo a olhar para as minhas migrações e a minha relação com elas. Penso na primeira vez que cheguei à Austrália, e como é verdade que parti, mais do que cheguei. Abandonei um lugar onde era feliz, Portugal, e cheguei de costas voltadas, olhos fixos a Noroeste. À Malásia, por contraste, cheguei. Aterrei com vontade de descobrir e explorar, e mesmo a saber que era temporário, cheguei.
Agora, penso que vou chegar à Austrália, mas dentro do avião, ainda a atravessar nuvens que não vejo do lugar onde estou sentada, o que sinto ainda, é que parto. Mas talvez seja este meio caminho, esta fronteira inventada também, e algures, quando estiver mais a Sul, comece aos poucos a chegar.
“Até quando faz sentido viver numa terra emprestada? Que valor objectivo tem a terra onde se nasceu, a família com que se cresceu, a paisagem que os olhos primeiro aprenderam a conhecer? E que valor objectivo tem essa outra terra que se pisa sem a ela se pertencer? Haverá alguma equação que responda de forma exacta, ao valor que se ganha subtraído ao que se perde, quando se está longe?”
No País do Silêncio
Estou vivendo algo parecido, saí do Brasil e estou em Portugal, o que me inspirou a voltar a escrever no Substack. Senti essas mesmas coisas, a logística que atrapalha o processo emocional, não ter tempo de elaborar as despedidas. E hoje mesmo escrevi sobre o meu carro, também todo embotado de memórias. Que interessante não estar sozinha vivendo essas mesmas coisas. Vou continuar te acompanhando por aqui. Boa mudança pra você!
Rita, o que seria a vida sem novos caminhos e histórias vividas para contar? Cá te espero num dia destes! Beijo grande