Pequena reflexão sobre a leitura como acto de resistência
Um grande título, para uma pequena e imediata partilha.
Acabei de ler há pouco, mesmo a tempo para a palestra que Mahmoud Alhirthani, especialista e investigador em Estudos Interculturais e Tradução, deu na Universiti Malaya hoje de manhã, a novela Men in the Sun de Ghassan Kanafani. Li-a com espanto. O mesmo com que o ano passado cheguei ao fim de Tanta Gente Mariana, de Maria Judite de Carvalho. A incredulidade perante a forma como obras de uma maestria avassaladora escapam aos nossos olhos de leitores. A forma como autores deste calibre são relegados para o fundo das estantes, a sua voz baixa, baixinha, até quase não se ouvir, a não ser para quem está muito atento.

Foi disso que se falou hoje, além da devida homenagem prestada a este tremendo escritor, assassinado no Líbano por um carro armadilhado em 1972, com apenas 36 anos. Kanafani escolheu escrever em árabe. E escolheu mais coisas que o tornaram nome delicado de ser pronunciado. Delicado de ser traduzido. Como se não bastasse já, ser Palestiniano.
Palestinian resistance literature and translation. (It is difficult to translate) mainly because this particular literature does not conform to the existing habitus of the dominant institutions positioned within the field of cultural production in the Anglophone and European space; a publisher who undertakes the mission of reproducing a work by kanafani, for example, will be aware that this work is unlikely to sell well in English.
(Um dos slides da conferência)
A Edward Said, lembrou Mahmoud Alhirthani, uma editora estado-unidense pediu-lhe um dia, na euforia imediata do Nobel atribuído a Naguib Mahfouz, uma lista de livros em árabe que ele estivesse disposto a traduzir. A euforia esfriou, a editora pensou melhor e nunca deu resposta à lista enviada por Said. Quando o escritor e ensaista perguntou a razão do silêncio a editora ter-lhe-á respondido que desistiam do projecto porque a língua árabe “é uma língua muito controversa”.
Não sabiam que as línguas, independentemente do que digam, podem ser controversas só por serem uma, e não outra? Ficam, pois, a saber.
Men in the Sun é uma história sublime, poderosíssima e extremamente actual. Pena Kanafani ser palestiniano…mas não poderia ser de outra forma. Pena Maria Judite de Carvalho ser mulher… mas também não poderia ser de outra forma. As razões que os silenciaram são as mesmas que tornam sublime o seu uso da palavra, em português ou em árabe. Arrisco a dizer, contudo, que as temáticas dos contos de Maria Judite de Carvalho perderam uma actualidade que as de Kanafani não perderam. Antes assim fosse, mas infelizmente, dentro e fora do território ocupado da Palestina, as várias formas de opressão, miséria, fuga e sobrevivência continuam dolorosamente actuais num mundo tecido a injustiças.
Convido-vos, queridas e queridos leitores, não só a descobrirem esta pequena novela de 74 páginas, mas a prestarem mais atenção ao que se esconde no fundo das estantes. A ir além dos livros que nos dão a ler, onde incidem os holofotes com luzes tão fortes que tanto deixam ver o que Alguém (abstracta e suprema entidade feita talvez de gente, cultura, cobardia, ganância, embora não se possa dizer com certeza, porque permanece fantasmagoricamente invisível) quer que seja visto, como remetem à escuridão profunda aquilo que Ela não quer.
Escrever é um acto de resistência e ler, não o é menos. Embora ambos actos possam ser também o seu exacto contrário.
E agora que acabo de escrever esta partilha, lembro-me que não é a primeira vez que falo nisto. E, curiosamente, nessa partilha que agora recordo, também falo de um autor palestiniano, neste caso mulher e contemporânea. Se não se lembram, fica aqui o link: Descolonizar a Mente.