Tabuada da empatia
Leituras recentes que um dia, mais cedo que tarde, acho que todos devíamos ter lido.
Gosto de gostar de livros tanto como gosto de gostar de pessoas. Gosto quando um ou outra me surpreendem e me acrescentam e trazem à superfície coisas que viviam submersas, à espera das palavras certas para terem corpo. A experiência da existência é quase sublime quando elas aparecem, as pessoas ou os livros, com essas palavras mágicas — ou os gestos que as produzem — e tão facilmente descobrem e dão nome a inquietações amorfas, sentimentos imberbes, e neles pegam como frutos afinal maduros com corpo de letras, sons e significados.
Ouço Omar El Akkad no podcast The Chris Hedges Report e distribuo-o, como se distribuem boas novas, ou amizades, ou ideias, ou sorrisos. Lágrimas também, para que não se acumulem em cheias. Como se distribuem bons livros. Porque o que é precioso nesta vida é distribuir, partilhar, dividir, e não recolher e acumular. Na matemática da vida, muitas vezes somar é subtrair e dividir é multiplicar. Equações difíceis que não se aprendem na escola e que sociedades cancerígenas não promovem. Somar e multiplicar não engrandece, mas esmigalha, como um cancro. Eis mais um pensamento contracorrente. Há sensivelmente uma eternidade na minha efemeridade que me parece que tudo o que penso, tudo o que viaja na auto-estrada das minhas veias, em sangue e vida, é contracorrente. Tento ajustar-me, deixar-me levar, integrar-me, adormecer. Mas um dia, infalivelmente, desperto e falho.
Tudo o que é precioso é para ser partilhado, penso, ao ouvir. E vou ler o livro de que fala, o último que escreveu, mas antes de ler, chega-me a casa o premiado Between the World and Me de Ta-Nehisi Coates. Reparem na voz passiva. Comecei a usá-la com o Roger, quando chega mais um livro a casa antes da pilha dos “por ler” ter diminuído. Chega-me a casa. Aprendi com os meios de comunicação. Uma bomba caiu. Ninguém a lançou. Eu, não comprei.
Ta-Nehisi Coates também lançou um novo livro, intitulado The Message. Na televisão americana, vejo-o ser recebido com farpas afiadas de arrogância e demagogia. Ouço a entrevista, incrédula. O teu livro podia estar na mochila de um terrorista1. Perdão?

Ainda não li The Message, porque não foi esse que me chegou a casa... ainda. Mas sei de que trata e sei porque é controverso, e porque alguém tão desnorteado, tão teimosamente imerso numa falsa realidade, pode achar que é uma apologia da violência, em vez do seu exacto oposto. E ao ler Between the World and Me sei também que os dois livros são uma continuidade e não uma ruptura. Que um oprimido sabe melhor do que ninguém reconhecer a opressão. Que um negro desperto e politizado nos Estados Unidos, como Ta-Nehisi Coates diz noutras palavras que não estas, reconhece imediatamente um Apartheid quando o vê, não só em intelecto, mas em cicatrizes ancestrais legadas de geração em geração, nunca saradas. Ta-Nehisi Coates sabe a que cheira a supremacia, a que sabe o suor da repressão e do medo. Between the World and Me não é um livro manso, como The Message com certeza também não será. As palavras rasgam, mordem, pontiagudas de verdades inconvenientes. Afinal, o livro é uma carta para um filho e, em grande parte, um pedido de desculpa. Não lhe é permitido desempenhar bem o papel de pai, confessa, e o livro é o resultado da raiva e dor que essa impotência lhe causa. Se um verbo fundamental da parentalidade é Proteger, Ta-Nehisi Coates não consegue fazê-lo. Nos EUA, não há um pai que possa proteger um filho negro adolescente, e não há pai que não o saiba. Essa impotência, essa impossibilidade de desempenhar uma das funções mais palpitantes da parentalidade, a par com um amor tão profundo que aperta e sufoca e por vezes dói, são o combustível que alimenta as palavras deste livro.
No outro livro, que ainda não me chegou, esse sobre o qual é entrevistado, Ta-Nehisi Coates reconhece esta mesma impotência quando a vê partilhada por outros iguais ou diferentes dele, noutros lugares. Porque dividir é mais precioso que multiplicar, na matemática da vida, na tabuada da empatia, na contracorrente da actualidade cancerígena. Por isso ele diz o que tantos outros como ele, regidos pela mesma tabuada, dizem há décadas: não há forma de deixar de ver, depois de se ver, e não há forma de não o ver. Depois, é mera questão de consciência, decidir calar ou expor o corpo às farpas.
A propaganda dos nossos dias é feroz, ominipresente, e quem a gere sabe que conta com a vontade que temos, humanos civilizados, de viver de olhos semiabertos, entregues a visões sonolentas, de braços parados, arrastados na corrente, sem grande esforço, alimentados e entretidos, vazios por dentro, pesados por fora.
Mas e se um dia, despertarmos? El-Akkad acredita que o faremos, e na verdade creio que é impossível ler o seu livro, lançado há poucos meses e não o fazer. Chama-se One Day Everyone Will Have Been Against This2 e começo a lê-lo mal termino Ta-Nehisi Coates. Talvez o tenha comprado mal o ouvi, na entrevista que referi no início desta partilha, porque me chega a casa pouco depois.
One Day Everyone Will Have Been Against This… será relevante, pensar esse futuro que não salva ninguém no presente?
Indago-me se a importância que guarda se resume a vindicação e a um cansaço de esbracejar contra a corrente, esforço que não será necessário no dia em que todos tivermos sido contra isto e a corrente siga na direcção em que tanto lutamos agora para nos manter. Será apenas isso? Porque que interesse tem o pensamento do futuro, se é indiscutivel que não vamos, então, a tempo de salvar as vidas que já se perderam e os traumas que se alojaram no corpo de gerações e gerações e gerações. Como também antes não fomos, quando vimos as cortinas de fumo nos céus de Dachau e de Auschwitz e nos convencemos que não sabíamos, como poderíamos nós saber, mas se soubéssemos teríamos levantado os portões com todos os nossos braços, teríamos entrado e libertado com todos os nossos passos, teríamos trazido para todas as nossas casas e aquecido com o calor de todos os nossos corações. Teríamos chorado sobre os corpos ainda vivos, salvos graças a nós, e as nossas lágrimas não continuariam a cair em restos de cinza fria.
Mas não o fazemos nunca. Nem o passado, nem o futuro, conduzem a nossa acção. Somos a maioria, e somos o maior mal do mundo. Os bons que nada fazem e que nada querem saber.
Mas insisto, se não o fizemos, e não o fazemos, de que serve, então, que One Day Everyone Will Have Always Been Against This?
Há dois anos, que me parecem uma eternidade, li um livro de banda desenhada que várias vezes me vem à memória. A história de uma adolescente alemã cheia de vida e de ideias que na Berlim da II Guerra Mundial é levada na corrente da banalização do mal. Não é má pessoa. Não é diferente do que somos quase todos os que sobrevivem. Lutar e seguir em contracorrente tem um preço elevado, inflaccionado até ao absurdo num regime autoritário. A maior parte de nós pensa que talvez seja possível viver tempos excepcionais de cabeça baixa. A olhar para o outro lado. E sair vivos e incólumes no fim. E a maior parte de nós, pelo menos aparentemente, consegue.
O livro, Irmina, é baseado na avó da autora, nos diários e cartas que Barbara Yelin encontrou. Irmina sobrevive numa Berlim fascista fazendo, num breve resumo, o que a imagem acima ilustra. Quando uma família de judeus é linchada em praça pública, quando a vizinha perseguida e esfomeada lhe pede ajuda, quando instrui o filho sobre o mundo. Do what I do, Frieder, and look away. Sobrevive a somar e a multiplicar, que equivalem afinal, na tabuada da vida, a dividir e subtrair. Irmina sobrevive, mas a longo prazo o resultado da equação revela-se e a consciência, quando menos se espera, rebenta. Como mina que não se sabia estar alojada dentro do peito.
Rebenta.
Talvez seja isso, então. Talvez para isso sirva One Day Everyone Will Have Always Been Against This. Para vincar a certeza de que a nossa consciência nunca poderá rebentar dessa forma, porque nunca deixámos que lá fosse colocada uma mina de silêncio e cumplicidade. Quando um dia todos tivermos sido contra isto, alguns de nós, muitos, mas sempre insuficientes contra a corrente, nunca o número certo, nunca a força que poderíamos ser para que humanidade não signifique o seu contrário, quando um dia isso acontecer, no peito, sobre todos os cadáveres e todo o horror nascerá um jardim em vez de rebentar uma mina. É pouco. Tão pouco… Mas talvez só possa ser isto. Porque enquanto poder e ganância forem as correntes que nos levam com força, e dela exale a propaganda que respiramos todos os dias, os horrores existem apenas para ser repetidos. A História, apenas um guia de orientação e aperfeiçoamento de um para outro.
Acabo de ler o livro, aindo tenho a cabeça a tropeçar nele, quando me deparo com uma conversa entre os dois autores3. Ta-Nehisi Coates entrevistado por Omar El Akkad no lançamento de The Message. Nem acredito. E depois penso, claro que se encontram, claro que conversam! E não me surpreende que mal começo a ouvir já esteja a tremer, quando, em apenas cinco palavras, logo no início, desfilam todas as frases, as imagens, as histórias, o desespero, as lutas, o vazio, o desânimo, dos últimos meses: “thank you for this book.”
Tudo o que é precioso, é para ser partilhado.

Omar El-Akkad diz que não há um único dia no último ano que não tenha derramado lágrimas e que vai tentar não o fazer na conversa, quando ela chegar à terceira parte do livro e mencionar Gaza. Spoiler alert: Não o vai conseguir.
Eu não o fiz todos os dias porque muitas vezes coloquei a realidade em pausa até voltar a conseguir olhá-la outra vez de frente sem desmoronar. Sim, muitas vezes desviei o rosto e olhei para o outro lado. Porque o fiz, a minha cobardia retirou-me clareza. Retirou-me a redenção das palavras líquidas onde Omar El Akkad mergulha com maestria. A coragem de nunca virar a cara, nunca deixar de ver, tem um preço, e algumas vezes um prémio. O preço é pago inteiramente pelo próprio. O prémio chega-nos a todos, em palavras de beleza tão delicada como dolorosa, e o mínimo que podemos fazê-lo é distribuí-lo, como se devem distribuir todas as preciosidades. Regra primeira da tabuada da empatia.
Agarrei as frases do livro, quis recortá-las e colocá-las na minha boca, e percebi que afinal muitas já as tenho tatuadas. Os capítulos começam como um diário de horrores com o qual estou familiarizada. Também eu vi tudo aquilo. Também eu fui atirada ao chão. Mas não tive a mesma coragem para me levantar, pegar no horror, colocá-lo na minha secretária e trabalhar com ele. Porque tive medo de pingar sangue pelos dias e do que isso faria do meu corpo. Porque não quis ir até ao fundo, até ao fim, e descobrir. Mas agora tenho onde ir buscar a certeza de saber o caminho, sem ter ferido os meus pés descalços e o meu corpo despido. Obrigado, El-Akkad, por o teres feito por mim.
Um dia, toda a gente devia ter lido estes livros. E que esse dia seja mais cedo do que tarde.
É assim que se refere ao livro, o jornalista da CBS. Diz que leu os livros anteriores de Ta-Nehisi Coates, mas se os leu, o mínimo que há a dizer é que não os soube ler. Coisa que acontece frequentemente, quando ler é uma junção de palavras e sons. Porque ao fechar as últimas páginas de Between the World and Me, não há como não antecipar o que aí vem.
“Um dia todos teremos sido contra isto” é a tradução, minha, do título do livro.
Gostava mesmo que ouvissem esta conversa. Por isso, além do link acima, deixo-o outra vez aqui:
E já agora, repito também o link para a entrevista que Chris Hedges faz a Omar El Akkad. Num mundo perfeito e humano, onde os meios de comunicação nos ajudassem a ser humanos e não a normalizar a desumanização, não seria tão extraordinária como é. Das entrevistas mais inspiradoras que alguma vez ouvi.
Obrigada por esta partilha.
Também gostei muito desse livro do Ta-Nehisi Coates, e comprei o segundo (perdão, fiz com que me chegasse na semana que vem) antes de chegar ao fim do texto.
Obrigada pela partilha!